“SE NÃO FOSSE IDIOTA, NÃO SERIA AMOR”

Ainda é de manhã, tomo café enquanto minha vó (mãe do meu pai) mexe em panelas falando sobre quando era criança, andava em pau-de-arara com o seu pai que obviamente é meu bisavô que conheci muito bem, da mesma forma como conheci minha bisavó. O engraçado é que eles me deixavam brincar de médico enquanto usava um jaleco imenso aos meus 6 anos de idade e hoje faço engenharia.

Deixo claro que durante todo o texto haverá confusões e um misto nos assuntos, minha cabeça se confunde, são tantas coisas ao mesmo tempo. Retomando o ponto de partida, minha vó fala de seus pais.

- Vó, quantos anos eles foram casados? Foi um longo tempo, não é? Indaguei.

- Filha, faz as contas aí. Eles casaram em 1946 e minha mãe morreu em 2004, foi quando houve a separação.

Minha vó suspirou.

- 58 anos de casados, vó. Disse com cara de surpresa.

Minha vó é viúva, ano que vem serão 10 anos que meu avô se foi. Sinto falta todos os dias ainda, perdi algo além dele, perdi meu pai (eu o considerava assim). No meio dessa conversa ela comenta que fora casada por 46 anos.

Essas coisas me deixam intrigada, apesar de muitas coisas ruins, lembro-me dos meus avôs trocando beijos e carinhos tímidos em algum momento ou outro. Meus bisavôs eram completamente apaixonados, meu bisavô a olhava como se não houvesse nenhuma outra mulher no mundo, aos 80 anos ele sentia ciúmes de qualquer um que se aproximava inclusive os netos. Risos.

No enterro da minha bisavó, ele caminhou até o caixão uma única vez. Baixou a cabeça e disse sorrindo:

-Ainda é tão bonita. Se eu pudesse voltar atrás teria dado mais beijos todos os dias, minha velhinha. Beijou sua mão e voltou para a cadeira em silêncio.

Termino meu café.

Minha rotina tem sido essa conversa de hoje. Acordo, passo horas para levantar, chegam mensagens e mais mensagens no celular e nenhuma que eu realmente quisesse receber. Não que eu ache ruim, mas existe uma que há muito tempo espero, talvez não tanto tempo comparado aos anos e anos dos meus avôs. Amigos me mandam levantar, tomar banho e café. Finalmente levanto, me arrasto até o banheiro, encaro meu reflexo no espelho fazendo caretas, tomo banho, escovo os dentes, me arrumo e saio em direção a casa da minha vó. Ela tem me alimentado, não tenho tido vontade de cozinhar ou fazer qualquer coisa na cozinha, nem macarrão instantâneo tem dado certo. Meu amigo de casa sempre faz suco de manhã ou vitamina e deixa pra mim.

Ao chegar ela me abraça, cheira e manda-me comer. Reclama que emagreci, me empurra mais comida, começa a falar dos parentes, das dores que sente por causa da idade, exclama dores e mais dores. Depois cozinha, o cheiro bom fica por toda a casa, às vezes não escuto ao certo o que está falando, mas sei deduzir o que se trata. Enquanto conversa vou acenando com a cabeça concordando com tudo que ela fala e vou escrevendo aqui, como agora que ela está falando dos gatos que aparecem, reclama que não gosta, mas não consegue mandar embora, alimenta todos e já a peguei fazendo carinho. Quando eles somem, fica triste e diz que não sabe por que foram embora.

Enquanto tudo fica no fogão, ela senta com a agenda e o celular na mão ligando para todos os filhos, alguns aparentes e fica sorrindo com um sorrisão lindo que me acalenta a alma todos os dias. Tenho necessidade desse sorriso para viver os meus dias, antes existia mais um que complementava tudo isso e hoje está longe, não sei se para sempre ou por um tempo.

Isso tudo é amor.

Já ficamos 2 anos sem nos falar, foi assim que voltei mais madura e ela mais compreensiva. Dessa maneira finalmente nos entendemos até hoje, sendo a saudade sentida de maneira inigualável por tanto tempo. Abraça-la depois desse período foi encontrar a paz novamente. Ali eu começava a conhecer de fato quem era minha vó e ela me conhecendo por inteira, sem metades.

E digo mais uma vez que isso tudo é amor.

O dia continua com a rotina da universidade, trabalho, finalização de curso, trabalho, casa, séries e amigos me procurando vez ou outra pra saber se estou bem, almocei, levantei, estudei e vivi. Sim, fiz tudo isso e um pouco mais. Dessa vez a vida não parou, continuou mesmo doendo, mesmo sangrando, mesmo sonhando. O pensamento cessou, mas encontrou outra forma de aparecer em meus sonhos todos os dias.

Algumas pessoas apareceram com segunda e terceiras intenções nas últimas semanas, mas nenhuma de fato conseguiu algo de mim. Grande parte nem respondi e outras respondi com um sincero “amo alguém”. Todas lamentaram e me desejaram sorte nessa jornada da vida. Ridiculamente ou não, respeito o amor que carrego comigo latejando em minha alma e permanecerei assim por muito tempo.

Conversando com uma amiga ela me falou que “se não fosse idiota, não seria amor”. Parei para pensar nos tantos anos de casamentos na minha família e indaguei quantas vezes eles brigaram, separaram, foram idiotas, correram atrás disso tudo e fizeram valer à pena. Ridiculamente viveram plenamente, sofreram e construíram essa família amorosa que hoje tenho.

Amar é ser idiota muitas vezes, é passar por cima do orgulho e pedir chances quantas vezes for necessário. Transpor barreiras, fazer sua parte até finalmente dar certo ou escutar o “me esquece de vez”.

É precisar afastar para conhecer novas coisas, pessoas e ainda sim ter certeza que é aquele alguém que se ama. É aquele alguém que queremos perto, que faz a diferença, que ninguém preenche aquele vazio e se não voltar, a vida continua mesmo não querendo, mas o não esquecer é inevitável.

Não quero ser como os meus pais que se evitam desde que nasci, mas aos meus 16 anos houve um encontro inesperado num corredor apertado. Vi minha mãe mudando de cor e meu pai que é extremamente branco ficando vermelho. Pararam se olhando por um tempo, não falaram nada e continuaram de cabeça baixa. Depois disso vi meu pai triste e pensativo durante um tempo e minha mãe mais triste ainda. Será que foi uma história interrompida pela imaturidade e o orgulho? Talvez.

Desejo sorte a eles numa próxima vida, um encontro de almas.

E tudo isso é amor.