6. Evangelho da Terra: Causticação Solar
Me arrastava pelo deserto sem fim. Caminhando, me arrastando e cada vez mais quente. Estava tudo tão claro e ao mesmo tempo tão incerto. O andar e a dor pela qual o corpo se submetia exigia da mente a concentração extrema em qualquer coisa que não fosse a dor, pois se deixasse o corpo dizer, não mais o conteria. O espírito se submeteria as vontades do corpo e não mais andariam sob o mesmo compasso, tão necessário aos que atravessam os desertos de si mesmo, palco de antigas guerras e lembranças de todo embaraço e conflito de outros tempos.
Neste deserto também se encontram as novas e antigas dores. Lá elas se misturam. Se o Sol flagela o corpo, aquelas se encarregam de tirar do espírito todo o ânimo necessário a travessia. Elas o atacam constantemente, o desencorajando a prosseguir, lhe apresentando as mais terríveis imagens tanto do passado, quanto as imaginadas pela ansiendade pelo desconhecido.
Terríveis são tais ataques, como um bando de hienas desesperadas pela carne do moribundo, impacientes em esperar pela morte heroica, pela qual se alimenta o espírito em seu desejo de viver. O espírito prossegue como um homem doente, cuja caminhada em busca do socorro é a único pequeno alívio ao qual possa recorrer. Atacado por todos os lados e já estonteado pelo cansaço e calor, num momento em que se distrai, o corpo cede, ele cai sem forças ou controle sobre o chão. Quando parecia ter o espírito deixado que o corpo encontrasse finalmente a morte, o espírito mais uma vez se levanta e anima o homem. Que prossegue sem perguntas ou lamentos, se arrastando cada vez mais vagorosamente.
Dias e dias se passando, a mesma coisa ou alguma lembrança de algum perigo cuja a razão pela sobrevivência ainda é mal compreendida. Talvez sorte ou destino, ou mesmo o raciocínio cansado que não permite outra coisa senão prosseguir e abandonar pelo caminho qualquer pensamento que fosse um peso a mais para o espírito.
A própria mente coloca em repouso o raciocínio para que não venham pensamentos e preocupações desnecessárias, para que nada distraia o espírito da missão que deve cumprir: atravessar o corpo pelo deserto para que aplaque os anseios da alma.
No final de tudo, sobra só a estrutura de sustentação da vida, se exaurindo pouco a pouco. Nem corpo nem alma, somente sangue, suor, perda de energia e adaptação da sobrevivência a um ambiente precário e agressivo. Do que existe ainda do corpo e da alma, já combalidos em suas lutas, pode se resumir a um relógio ou uma equação cada vez mais complexa e difícil de se resolver, cujo objetivo a manter algo que se possa chamar de vida ainda ativo.
Ajustando as mais diversas variáveis, nem o corpo nem a mente são poupados, sacrifícios de ambos são exigidos. O delírio, nestas condições, é o máximo de lucidez permitida a alma.