Estrangeira

Do maço comprado há algumas horas atrás restam três cigarros. O bairro de classe média morre, e seus apartamentos, prostíbulos silenciosos. A inquietação das possibilidades baldadas soa. Na rua quase deserta de um edifício recém construído, apenas um cão e dois vigias em olhos atentos pro nada, brincam, não sabem que se vive e se morre. Já completam duas horas de um tempo não vivido, e o mistério celestial, e a inércia, e ela mesma no instante que foge. Desatina, gira, gira, e as cinzas se espalham pela porcelana. Ah, seria ela mesma aquela que um dia pensara em atingir o infinito como um gigante ?

Observa a sujidade que provoca, lembra, sim, do cinzeiro que está em cima da poltrona, mas prefere mesmo ao chão sujo, a sordidez da transparência, numa tentativa de superação daquela coisa limpa e asseada que a chamava como numa platéia de ouvintes esquizofrênicos em transe. Num jazz leve, a música que apenas se pode ouvir, uma ternura espalhada fragmenta numa violência gostosa, cada ato a esbofeteava com prazer, precisava ser polida, sabia que sentia. Sim, sentia sinceramente o que não conseguia entender, um bloco negro de desejos e memórias a partir-se, rabiscados num papel, tentativas falidas de um possível auto-entendimento, a re-vivência de um sou-me que não vinha, e cabia, e não servia, e, sim, logo se transformaria em cinzas de porcelana. O mais belo em cinzas: sentimentos pintados, ações silenciosas, possibilidades desafinadas e impotentes, desafios pendurados em tela seca.

Ah, sua impotência naquilo a flamejar, a dor que geme no inferno desconhecido, se havia razões em seus atos, as deixava, sim, as deixava, estrangeira aquém-de-si.

Os retratos daqueles que estiveram próximos, tropeçavam, tolices inventadas e comidas pela realidade que não cessa. Não cessa, não cessa. Não, não se via mais em si. A segurança pesava, como uma porta fechada e oca e só. Algumas decisões consomem, mastigam e soltam boca a fora. Mensagens sem repostas, enlouquecidas. Compromissos adiados, alfinetadas num corpo pálido e jovem. Descaso, descaso, descaso... Ou falta de amor ? Apenas excesso de vida. Ria pouco, descompromissada que era. Uma ligação sem nada e sem ar a jogava pela janela do décimo segundo andar.

Não cabia no que esperavam: cálculos, aritméticas, proporcionalidades, um semi-sorriso que não participava, enquanto suas pernas se cruzavam e se perdiam.

Mostarda, não. Ela era do tamanho do espaço, de corpos e seres. Um todo oco. Sofás, estantes, mesas, cadeiras, luzes: odiava esses detalhes, e mergulhava neles como num precipício.

Palavras deixam sombras, que formam entes, amantes, navalhas.

Num suspiro contra si mesma, no último cigarro, o alarme dispara. Susto, alívio, tremor, fuga. Fuga: partida rápida e precipitada da chatice dos momentos não sentidos. Concebe um ponto sem dimensão, perdido num mundo de esfinges amarelas. Incoerência entre o que se quis dizer ? Talvez. Sentiu, num instante subtraído, superar as integridades de caráter e os racionalismos kantianos e a metafísica da segurança da essência dos seres.

Ásperos e presos em suas próprias entranhas ! Seus pensamentos a antecipavam.

O maço amassado em pó, um insulto. A geladeira vazia e vã, outro. As segundas e terças e quartas: arrancadas. Encontros e paisagens limpos com vassoura. Aquela visão, uma violeta. Os quadros decorados por vaidade e a porcelana: não havia mais beleza no que possuíra. Sob luzes ansiosas e palmas suaves, solta a fumaça presa num impulso mudo.

Vive, e não existe o que afigura como belo.

As chaves na mão, os dias arrancados e espalhados na porcelana, e o tempo, medida de duração dos seres, que não deixa, não deixa de se direcionar para um desejo tragado e de final funesto. Passa pela mostarda da sala, e se fecha. Do outro lado, cortinas estampadas de azul virgem. Conclui: nada se pode pontualmente retratar. E segue, num sorriso de criança, desafinada.

Recife, 05/06/07.

Gabrielle Lucena
Enviado por Gabrielle Lucena em 02/11/2015
Reeditado em 27/03/2016
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