VIAGEM E SAUDADE
Viajo sozinha porque tenho pressa.
Viajo assim porque o tempo brinca comigo. Dele nada sei nem mais o mensuro. Sou sua refém.
Meus pés só cabem dentro dos meus próprios passos.
Meus sonhos só vivem dentro de meus limites.
As velas de reserva já são cotos .
O amor esteve mais entre as dobras da minha vida do que em suas paragens e paisagens. Amei tanto, tanto fui amada e ainda assim tudo pareceu muito pouco.
E agora?
Atravesso os dias como quem espera mas não se demora muito.
Eu queria a chave da porta dos dias futuros. Da morada final. Da passagem secreta, do porão, do sótão, o mapa dos subterrâneos. Um solar aconchegante para tantas pessoas, histórias e saudades, para a fieira de tudo que ficou comigo depois que se tornaram invisíveis e eu órfã de contatos e carinhos.
Aos poucos o vento ponteiro apagará da vida, e nos que nela restarem, as minhas pegadas, o perfume, a voz, o convite do meu olhar, as palavras por vezes toscas, as manias, os erros, o atrevimento incômodo que abriga certa timidez, o modo de me desculpar, o empenho em acertar, minha solicitude e a precoce ranzinzice. Minha memória. A inquietude. Vozes interiores e longínquas que dialogam com meus monólogos. Todos os dias. A qualquer hora e inconveniência. Quando criança eu já falava sozinha, interpretava cenas e preparava textos. Pra mim mesma. Não é meio louco isso? Infância solitária.
Onde estacionarei minha alma, esta cidade perdida dentro de mim? Quem poderá recontar-me minimamente, do que sou e sinto ou do que fui (in)capaz?
Quem de fato me viu por inteiro alguma vez? Sem lendas nem legendas? Quem consegue me adivinhar alinhavando a fieira de mortos queridos que me pesam sobre as pestanas salgadas? Ou descobre que nenhum verso meu, nenhum!, é definitvo e terminado?
Sou flutuante entre os dias e fatos e pessoas que flutuam entre mim.
Insólitos passos procuram uma trilha entre os claros e escuros, entre os absurdos, as alucinações e a realidade grise, as flores e as asas entre pesadelos.
Sim... o horizonte é mesmo uma linha circular; volta-se sempre ao ponto de partida. Caminhada interminável. Causa cansaço e enfado
Viajo solitária porque não há outro jeito de fazer a travessia.
E estou quase de partida.
Sinto a aridez que já se sabe pó, os movimentos presos entre os ossos, a existência estrangeira. A experiência do vazio.
Encontrar-se no esconder-se?
... e de repente, por inesperada escolha aleatória da memória, eu me lembro de um lindo conto de Jules Supervieille, "L'enfant de l'haute mer". Não sei por quê.
Uma menina ocupa-se de preservar a vida de uma cidadezinha num ponto do oceano. Sua população desapareceu, da noite para o dia, sem explicação. A criança tornou-se sua única habitante.
Se alguém se interessar pelo conto, tenho-o em francês. Posso enviar. Traduzi-o há já três décadas mas ainda não foi digitado.
foto: google