As Pipas
As Pipas
Não são as linhas que lhes sustentam os voos, são os olhares. Não é o vento que as fazem decolar, é o impulso, a velocidade, a perícia do timoneiro. Soluçantes, vão alcançando as alturas, para depois encontrar o plano perfeito e juntar-se a outras pipas, fazendo festa em pleno ar.
São alegres na essência, porque carregam com elas crianças em êxtase e, como fetos abrigados no ventre imensurável do universo, ligam o céu a terra através do cordão que as unem as mãos hábeis de seus condutores. Em movimentos ziguezagueantes vão desafiando a lei da gravidade. Lá em cima até onde os olhos alcançam, explodindo numa pirotecnia de cores e luzes, vão elas, as pipas, enfeitando a infância. Não aquela medida pela idade, mas aquela que vive clandestinamente no céu de cada um de nós.
Mais que brinquedos, obras de engenharia, milimetricamente desenhadas para a magia do voo, para a liberdade do voo! Asas que carregam para alto não apenas os corpos celulósicos presos ao esqueleto vegetal que lhes estruturam e lhes dão forma e graça, mas acima de tudo, os olhares, os sorrisos, as alegrias dos projetos bem sucedidos.
Lá vão elas, cardumes ornamentais flutuando no infinito azul. Ora tranquilas, planando como pássaros nas correntes quentes, ora como gaviões em caça, agitadas e rodopiantes. Lá estão elas, povoando o céu da minha cidade e dos meus sonhos. Às vezes solitárias e pacíficas, às vezes ágeis e instintivas na proteção de seus territórios. Investem sobre outras, rompendo-lhes a linha tênue que as unem aos seus criadores. Desgovernadas deixam-se levar pelo vento, perdendo-se na vastidão do espaço sem fim ou, como cães abandonados, buscam outras mãos, outros risos e outras chances de voltarem a voar.
São elas, as pipas, que tanto enfeitiçaram a minha meninice, que levantaram meus olhos para o céu e construíram em mim o desejo de voar além de mim mesmo. Por elas e com elas, só ou em bandos, corri pelas ruas e terrenos baldios a empiná-las em busca de aventuras, verdadeiras batalhas aéreas. Pés descalços, alimentando-me da energia da terra, sob a densa sombra do azul celeste enfeitado de pipas e sonhos de infância.
Elas continuam deslizando pelos céus de todas as crianças. Em julho e dezembro, unidas em festa de andorinhas, fazem revoadas nos céus de todas as férias.
Enquanto escrevo, através da janela de meu apartamento, miro no horizonte uma pipa solitária que flutua livre.
Que infância sustenta aquela pipa?