Todas as ruas do mundo

O início e o fim.

Ou melhor, seriam muitos inícios e muitos fins?

Não! Pelo menos um fim. E o meu fim ainda não chegou.

Um dia, certamente, chegará e, pior para mim, eu não estarei lá para ver o que virá depois.

Contudo, estarei lá em lembrança, no pensamento

daqueles que de uma forma ou de outra,

de maneiras várias, contraditórias, gostosas, odiosas, prazerosas e assim por diante, dividiram a trajetória de uma vida.

De uma não! De várias vidas;

pois, o que é a (nossa) vida senão a interseção de várias outras?

Sigo escrevendo esta história, sem diretriz aparente,

os registros que vêm à memória;

de tempos que já se foram, mas que se atualizam, mimetizam, escapolem, me enlaçam, me sufocam, me acolhem e me acarinham... outros tempos, que se refazem na lembrança de ontem, na repetição de hoje e no seguir do amanhã.

Eu, menino, dialogando com este homem, na alvorada da velhice.

Quantas histórias para contar,

alegrias, tristezas, prazeres e lágrimas para verter?

As lembranças escritas, purgadas, ricamente adornadas, maltrapilhas esquecidas, andrajos de uma vida e de vivências que se esvaem no tempo e que tentam desesperadamente escapar do esquecimento,

e serem registradas nalgum lugar;

ainda que, para nenhum leitor, estas linhas se façam necessárias, encarnam o resgate de uma trajetória peculiar e, ao mesmo tempo, tão genérica e comum que é possível identificá-la na multidão desconhecida que habitou e que habita um tempo de muitas lutas e expectativas,

e que hoje se delineia e se afirma na tragédia de uma pós-moderna alienação.

Curioso esse vicio do homem, de sempre estar a repetir...

O novo desafia, amedronta, nos encara;

nos faz reencontrar, paradoxalmente, prazeres e fantasmas do passados, no presente.

Risonhas e, ao mesmo tempo, terríveis, faces e roupagens

que, pavorosamente, se atualizam

e, descaradas, nos impõem dolorosamente contraditórias recordações.

Ontem, hoje, amanhã;

passado, presente, futuro.

Como descrevê-los? Por onde começar?

Talvez por isso e por outras coisas que não me lembro,

ou julgo não me lembrar,

esta história, ou prosa poética ou, talvez melhor dizer,

esta história contada na forma de uma prosa poética,

discorre no aquém da memória, num dia comum.

Aliás, numa noite comum, de brisa de primavera,

depois do jantar, brincando com amigos na rua, naquela rua,

que na minha cabeça, me incita a redigir este escrito, a origem e o fim desta história.

Minhas reminiscências; coisas e vivências tão comuns

que só as conto para mim mesmo.

Exercício cético de um escrito que talvez ninguém irá ler.

Relato solitário que enuncia a finitude percebida, de uma vida que se encontra no limiar de se tornar anoitecida...

Minhas memórias, trôpegas, felizes, brilhantes, gostosas, repugnantes.

Descrição de dizeres, quereres, fazeres, tentações,

desejos, saúde, doença, acidente,

choros, queimaduras, machucados, ossos quebrados,

sapatos apertados, cadarços mal amarrados,

felicidade do dia de Natal,

impotência e tristeza pelos diversos enfrentamentos e

desespero de se ver muitas vezes sozinho.

Conjunto de fatos que se põem, se justapõem,

se contradizem, se negam e se afirmam.

Registros organizados num arquivo ora perto, ora longínquo;

ora elegante, ora aflito; ora decente, ora escrachado;

religioso, excomungado, pecaminoso, inocentado.

Um arquivo com muitas gavetas,

com portas e janelas,

todas elas a lembrança a ranger;

porém escuro, muitas vezes somente perceptível à luz de velas.

Um arquivo escondido no recôndito de minha alma, do meu ser.

Taquígrafo peculiar das incompletas frases que delineiam

o tortuoso discurso de parte da trajetória do meu viver.

Todavia, apesar de tudo isto, esta á a minha história.

Miríade intensa e emocionada de experiências

que como os fios de uma tecelagem se esvaem e se renovam na linha do tempo, se entrecruzam, delineando o tecido da história de todos nós;

cada qual com seus pontos, suas dobras, incompletudes e imperfeições.

Memória avivada, pedaços de vida,

enclausurada em continentes sem nome,

cujos fragmentos são aqui recontados, peças de uma arqueologia do acaso,

sem mapa, sem rumo, sem régua ou compasso.

Textos mal acabados,

garatujas tortas de um alfabeto cujas palavras não se entregam por completo,

às tentativas de decifrar o misterioso epítome que é aqui grosseiramente decantado.

Todas as ruas do mundo, esquecidas, presentes e marcantes, cada uma a seu modo, nos registros sensíveis e possíveis na cabeça e na alma de todos nós.

G_Bienenstein
Enviado por G_Bienenstein em 12/10/2015
Reeditado em 15/10/2015
Código do texto: T5412511
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