Eu remido
Ei,
Você aí que passa e nem olha,
Tropeça em mim, finge não ver,
Nega-me, chuta e cospe minhas quirelas.
Porque tens nos pés um legítimo cromo,
Trajas fios nobres, fino algodão de sobretudo,
Extrais retinido indiscreto das chaves do teu possante,
Num irritar dissonante: “reles - andas a pé!”,
Pensas que teu seja este mundo?
Caro mancebo,
Usufrui tempos faustos, já pompa igual exibi.
Sobranceiro: tudo olhava por sobre o pince-nez...
Ultrajes sem conta dirigi às gentes, por aí.
Não poucos sobrepujei e muitos calos fiz doer.
Sabe, ainda tenho comigo no meu bornal,
Alguns saldos de quando fui rompante:
Rolha d’um legítimo “single malt”, selos de caviar,
Extrato zero da conta que eu mesmo fiz liquidar.
Jovem,
De ti nada me causa inveja alguma,
Exceto que olhando assim de esguelha,
O escasso franzido da tua fronte, observes,
Dá-me conta de ainda haver algum tempo,
Exato e aprazado de permitir-nos cumprir,
O meu vincendo de estar indo embora,
O seu designado de me suceder!
Ah, bendito!
Vacilei na pugna, faltei com o décimo preceito.
Para não parecer cobiçoso, carece-me explicar:
A época, se minha, jeito eu faria dar,
Visitava todos os olhos que um dia fiz lacrimar!
Usava de todo recurso, causava o maior alarido,
Implorava perdão, um a um, até haver conseguido
Reaver incorrupta e incólume minh'alma,
Para a Quem de poder restitui-la alva!
Moço,
Nas minhas andanças de sempre,
Cuidei de guardar um mimo, uma oferenda,
No qual se devaneia bastando repousar a cabeça.
Um dia, inda que longínquo, te chegarão as agruras,
E, quando do que és agora, só restar clamor e saudade,
Pegue-o no rasgo cego do muro e dele faça o melhor proveito.
É o meu travesseiro de penas,
Que o deixo a ti de presente!