Advérbios

Em resumo este sonho foi como nenhum outro, sendo, ao mesmo tempo, parecidíssimo com aqueles que já havia sonhado: personagens aparentemente desconhecidos que unidos formavam um recital de sombras e vultos falantes compondo um cenário esfumaçado de sombras e desejos ocultos.

Estávamos todos lá: eu - evidentemente, os advérbios e as fumaças contorcendo-se, ora esfumaçando-se para formar nada impressionista imagem cerebral.

Contorcendo-se eu também estava. Agora caminhava por entre os estandes ilegais de vendas que ocupavam grande parte de um salão destinado a esta ilegalidade. Adicionando um parênteses e mais dois pontos explicativos: a ilegalidade é algo costumeiramente mutável; se controlada e estabelecida sob os olhos daqueles que se beneficiarão desta, está permitida a prática ilegal; se difusa e transmissiva, rendendo frutos a outras macieiras, a ilegalidade torna-se, por fim, ilegal.

Voltando aos estandes. Passeava por dentre aqueles corredores os quais formavam grandes avenidas de contrabando, situações e cigarros trazidos de lugares que o governo certamente atribui nas coxas a classificação de PDV. Chamaria eu, caso do governo fosse, PDD devido ao seu alto grau de organização distributiva.

Passeava por dentre aqueles corredores os quais formavam grandes avenidas, ora túneis de vento seco, a procura de mídias virgens para realizar um procedimento de formatação em minha máquina de escrever. Passeando em frente a um deles, fui abordado.

- CD, senhor? CD? Dois por um! Dois por um!

Desconfiei, primeiramente, que houvesse algum processo de duplicação agindo sobre a linguagem daquele universo turvo e seco. Os vendedores multiplicavam-se, assim como suas frases. Ofereciam-me duplamente quantidades de tudo que se pudesse traficar. Três camisetas por cinquenta reais, pares de meias por cinco, mídias graváveis por um e cinquenta.

Segundamente comprei dois CDs e fui-me embora formatar ilegalmente minha máquina, pensando não ser assim tão ilegal o que fazia: abusar extensivamente dos advérbios e das derivações do vocábulo "ilegal", levando um par de meias, três camisetas e um cigarro que só poderia ser comprado no Paraguai.

Agradeço a quem por este deleite? Ao tráfico ou ao governo?

Por ora agradeço somente aos advérbios.

Ubaldo Vinícius
Enviado por Ubaldo Vinícius em 09/09/2015
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