UMA LATA DE LEITE
Em um povoado pobre, sertão do Ceará, década de oitenta, moravam aproximadamente quarenta famílias. Nesse povoado, havia um senhor magrinho, pequenino, pés rachados pelo sol, pareciam a terra seca que ele enfrentava todos os dias.
Esse período era marcado por secas inclementes. O trabalho era construção de açudes e barragens em propriedades privadas através do programa de emergência. O governo pagava com o dinheiro do povo, mas quem ficava com as obras eram os grandes latifundiários. O famoso ciclo da seca no sertão!
Mas como isso não é texto de História, afinal, nesses textos só estão "grandes personalidades", vou voltar ao povoado e ao homenzinho. Ah! ele trabalhava na emergência, mas quando era época de chuva caçava, pescava e conseguia lucrar com isso. Tinha uma bicicleta, uma vaca e morava em casa de tijolo, era tido como "remediado" por seus vizinhos, por isso podia comprar fiado na farmácia, na funerária e onde fosse necessário, inclusive, ele vendia o algodão na folha. Aquele era o tempo em que os homens davam suas palavras e honravam-nas.
Á noite, quando todos dormiam, ele acordava com choro de criança. Ia a cozinha, pegava uma lata de óleo Pajeú, que funcionava como copo, colocava um pouco de leite, deixava sobre as brasas, vestia a camisa, colocava o chapéu de couro e saia com seus chinelos de pneu arrastando os pés.
Os cachorros do povoado já o conheciam, abanavam o rabo e ele ia com a lata de leite na mão. Batia nas portas de vara, o vizinho saia, acanhado, porque o filho estava chorando e ia logo dizendo:
- Já faz dia que esse minino tá duente, num come nada. Num tem dinheiro pra mode compra remédio...
- Homi, dê esse leite e espere, se for a duença que tô pensando, ele milhora, se não pego a bicicreta e vou buscar remédio.
O menino, magro, barrigudo, pálido, olhodo, ossudo, com catarro escorrendo,bebia o leite todo duma sentada. Batia uma suadeira medonha e ficava meio desfalecido.
O homenzinho dizia:
- vamo dar uma hora, se ele chorar eu volto na bicicreta e vou comprar remédio.
O silêncio se restabelecia. Só galos cantavam, os cachorros grunhiam de frio e fome...
Pela manhã, na construção do açude, não se falava em outra coisa:
- O leite de lá é milagroso, já salvou muita gente.
- Quando tem um duente escangotado, ele traz leite, se não der jeito já vai comprar o caixão...
Lá vem o feitor, todos cochicham, mas ele, com a arrogância que o cargo permite, grita:
- Magote de preguiçoso, bota essa terra, se não desconto o ponto...
O grito ecoa nos barrancos, os homens olham para o chão e com picaretes nas mãos enfiam na terra, pensando no bucho do feitor. A terra cai forte com a violência do picarete. Só se ouve o zumbido das rodas dos carrinhos de terra e dos picaretes nas rochas.
Um vento forte levanta a poeira que enche , os olhos, a boca, o nariz e os pulmões dos trabalhadores. São homens de barro.