Um som urbano

Um adolescente não sai de uma pequena cidade para uma grande sem ser arrebatado por novas sensações. Oscilar entre o temor, a estranheza e o encantamento faz parte do inerente processo de adaptação. Mas se tem algo que está firme em minha memória é um som. Um dos primeiros sons que notei e que me acompanhou por muitos meses.

No quarto em que passei a residir havia uma janela. Uma janela de apartamento, de material barato, metálico, sem muita vida. Sem uma vista que geralmente esperamos do quarto andar. Dela via-se, um pouco distante, uma avenida, dessas muito movimentadas, que contornam as cidades e servem de fluxo de entrada e saída. Mesmo distante a avenida estava presente naquele quarto. O som incessante do pneu sendo rasgado pelo asfalto entrava incessantemente pela janela, estivesse ela aberta ou fechada. E foi assim, sem que eu permitisse, que o som acrescentou-se ao cenário daquela nova vida. Não importa se eu estivesse pela manhã, ao acordar em uma cama ainda estranha, ou buscando refúgio nos livros. Seria o único som quando eu estivesse mirando em silêncio uma parede branca para encontrar nas memórias o carinho de casa. Mesmo quando eu decidisse fechar o dia sob os lençóis aquele som me acompanharia. Mais calmo, porém ainda mais presente. Na noite, ainda trazia consigo luzes que se chocavam levemente no vidro da janela, como se a avenida ainda quisesse ser lembrada. Som e luz me certificavam de que a cidade não dormia e a vida não tinha hora para descansar.

O tempo depois fez o seu trabalho e o som tornou-se orgânico, indistinguível. Os anos se passaram e as camas e os quartos foram outros. Até um dia eu encontrar um local meu de verdade. Um quarto, uma cama e uma janela bem próxima.

E foi num desses dias de chuva, quando nos encantamos com a força da natureza e deixamos nossos deslumbramentos chegarem mais facilmente, que senti. Era tarde da noite, talvez uma ou duas da madrugada. Silêncio a reinar lá fora. Largado sobre a cama, com um livro aberto e ansiando degustá-lo, notei antes um som a surgir. Da minha janela do 2º andar, bem próximo, uma avenida. Chuva a chocar-se contra o asfalto, acumulando-se em um espelho d’água. E repentinamente, a quebrar o silêncio desejado da leitura, um carro atravessa a avenida encharcada riscando em velocidade a água, espalhando um balé de cachoeiras e um som, que entrou cantando suavemente em minha janela em uma poesia não desejada pelos pneus. Fechei o livro, mirei a janela e esperei, desejoso, o próximo carro a correr na noite.

Di Ramos
Enviado por Di Ramos em 12/08/2015
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