O Fio de Ouro

O Fio de Ouro




Há um fio de ouro, fino como um cabelo, como teia de aranha, como um filamento de lâmpada antiga, um filete de água visto de cima.

Acaba de partir daqui, posso vê-lo, fino como uma saudade, ou um adeus de alguém querido lá na beirada de alguma coisa longínqua que mal se divisa. O fio se move, se alonga, cria mais de si e se estica, um fio sem estrias, sem máculas, dir-se-ia uma seda tenaz, uma seta sem ponta, um cadarço principesco, é de ouro, acaba de partir daqui mesmo, se desloca, vai até o Amapá, ali enseja um novelo, depois, ninguém adivinha, baixa na Turquia, na península ibérica, no Canadá, então se espalha em mil direções, volta pra cá sem aviso e se embaraça no rego dos soteropolitanos, nas veias dos potiguares, no ventre dos capixabas, nos anseios dos tricordianos, o fio vai longe, quem pode senti-lo se alegra.

Acabei de vê-lo sair, mas não nasceu aqui. É tão velho que não tem idade, nem nome, nem credo, além de ser fino como um capilar próximo a aorta, como uma ranhura de folha verde carnuda caída de grande árvore. Gente que acredita em tolices considera-o da espessura das linhas da palma das mãos. Mas é de ouro, disso não se duvida, e por estar em todas as mãos, confabula-se que bem poderia uni-las, pois são idênticas as mãos colhendo arroz na Tailândia e apertando teclados nos grandes centros populosos, modernos, atarantados, quiçá insalubres e enevoados.

O fio desconhece tudo isso, cria mais de si, se estica e se espalha, vai formando uma mandala, corajosos os que dizem num desabafo que o fio une jauleiros e encarcerados; bombeiros e incendiários; curadores e molestadores; policiais e assaltantes; religiosos e ateus; canalhas e filantropos. O fio une à revelia operando a atividade exterior do espírito, se tu não o reconheces nesta vida, noutra será dada a oportunidade de enxergá-lo, de ouro, fino como as antenas de um inseto, os bigodes de um gato, o cabo que prende a jabuticaba ou a amora, a linha que contorna a azálea.

Nem todos crêem, mas os que se fiam são unânimes - ele é fino como o silêncio de um abraço de amor que se compreende no toque, longo, quente, aconchegante. Às vezes vacila na ponta da língua ou no desvio do olhar, prestes a ser expelido, então ainda é um fio disforme, um vir a ser, está no engasgo desse mesmo amor que quer sair por todo o pano e encontrar o porto, o filho e o parto, ele é a data do seu nascimento e o timbre dos seus passeios ensolarados, a cada passeio há uma mensagem embutida, sempre a mesma, pois trata-se sempre do mesmo fio, faz-se a hora de sacudir as sandálias de um cobre envelhecido, de uma prata opaca, de uma dor sem serventia e por fim virar ouro luzindo nas linhas das mãos que querem se dar, umas à outras.

Sim, há um fio de ouro, seu bordão visa a Ordem Superior de Ser, ele vive nos Reinos da Causa, sua missão é se manifestar no Mundo dos Efeitos.

Que você possa encontrá-lo agora.


(Imagem: Juan Downey,  Mapa da América. 1975. Lápis de cor, lápis e acrílico. MoMA, Nova Iorque)
 
Bernard Gontier
Enviado por Bernard Gontier em 12/08/2015
Reeditado em 12/07/2020
Código do texto: T5343273
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