Contemplação
Por entre as fissuras das grossas camadas do tempo que se sucediam num movimento interminável, ele pudera contemplar a sua amada pela primeira vez. Ainda não havia percebido o belo desenho que fazia o contato do seu corpo nu deitado na cama entre lençóis brancos e beges, estando o mesmo disposto de um modo sutilmente ondulado. Enquanto ela mergulhava profunda e tranquilamente em seus sonhos mais longínquos, ele a adorava de uma maneira até então nunca experimentada, apenas beijando-a com seus olhos e ouvindo a cadência de sua respiração. Não precisava de mais nenhuma espécie de contato físico, porque o instante percebido daquele êxtase contemplatório já lhe satisfazia com muito afinco os desejos mais íntimos que trazia consigo. Havia uma sucessão de camadas sensoriais pairando no espaço entre os seus olhos e o corpo de sua amada, que impedia transformar aquele momento sagrado numa mera violação concupiscente. Ao mesmo tempo, aquela era uma sensação apenas degustada por sua mente, pois como o objeto de sua contemplação estava submerso em águas oníricas, a distância entre ambos não se media com réguas comuns de objetos físicos, mas com suposições fantasiosas de fabulistas amorosos. Ainda assim, ele resolveu abrir mão de todas as películas impeditivas para tomar aquele lapso temporal como uma fotografia do instante em que subiste no cume da montanha de seus dias. Com tanta entrega, não havia tempo para se pensar num lá fora, num depois, numa outra forma de pensar isso tudo. As palavras que aqui se derramam e despencam de uma ladeira não muito alta não condizem com esse momento belo de contemplação. Passam longe. Mas é o mais perto que se chegou da lembrança do que foi aquilo tudo. A narrativa que cospe palavras bem articuladas jamais será o retrato fiel de fragmentos temporais que constituíram a experiência deste acontecimento. Falar sobre a visão do ser masculino que contemplava a sua amada envolta nos cachos de seu inconsciente não traz de volta o cheiro da atmosfera daquele ato extremamente fabuloso. Apenas reduz o momento, o espaço, as sensações, o tudo que não se pode expressar em palavras, verbos desgarrados de sua imagem originária, texto que se distancia dos sentidos mais adequados à sua orquestração pragmática. No fim, o que restam são duas contemplações: a desse nada que tenta abrigar o tudo da real experiência, e a desse tudo que é o mundo da linguagem que ignora outro conhecimento, a não ser o de suas leis próprias e de suas infinitas criações especulares e labirínticas.