SOBRE PÃES E AMORES
O coração da casa era a cozinha, e na cozinha, a chama do fogão acesa. Voltada para o balcão de granito muito fino e iluminado, ela sovava a massa que se esgarçava sobre a superfície, espalhando aqui e ali um jato airado. Um som suave saía da massa a cada novo golpe, era uma espécie de “flopt”, muito baixo e seco que ela adorava fazer soar. Preparava os pães da semana; espalhava sobre eles especiarias, condimentos e coberturas. Suas mãos tão ágeis e tão leves ao mesmo tempo, tornavam-se harmoniosas no ofício do cozer. Uma garrafa de vinho, já pela metade, talvez explicasse a distração a que se punha naquele instante. Envolta em seus pensamentos, revivendo os tempos passados, questionando-se dos porquês para os quais jamais teria respostas. Sentia-se fresca, como fora algum dia. Os cabelos, presos despretensiosamente, caíam-lhe no rosto em pequenas ondas que se movimentavam ao som dos flopts. Abria a massa generosamente e guarnecia seu interior com carnes e queijos. Alguns legumes aqui e ali davam cor à massa branca. Uma pitada de flor de sal, o aroma da baunilha pairando no ar. Vez ou outra parava de súbito, como a lembrar-se de algo, ou quem sabe, de alguém. A alquimia daquele fazer a fazia rememorar tempos idos, onde a esperança ainda causava-lhe rubor. O calor do forno tomou o ambiente e ela começou a sentir a nuca gotejar; por certo, a gola da camisa estaria àquela altura marcada. Havia apenas algumas poucas tiras de trigo, sobras dos pães que agora, assentados em formas bem untadas, esperavam pacientemente a hora de ir ao forno. Resignados ou não, iam pálidos ao destino que lhes dava ela e, de lá, saíam dourados e fumegantes. Pecados remidos, podiam agora matar a fome daqueles que necessitam mais que pão para viver. De repente, parou subitamente diante da pia, enquanto lavava as mãos de dedos longos e unhas curtas. Enquanto secava-as mais que o costume, sorvia o cheiro que invadia sua cozinha, e já não era o trigo queimado pelo calor do forno, nem eram as carnes derretendo a gordura saborosa de seus bacons; tão pouco as ervas liberando seus odores, os limões sicilianos que adorava colher nas tardes de verão. Ou, o gengibre explodindo sabores sobre gomos de laranja e canela. Não. Aquele cheiro tinha algo de marinho, algo que se não criava em suas terras, nem nas cercanias ou adjacências de sua fazenda. Suas pupilas dilataram-se, enquanto ela olhava pela janela no horizonte da Chapada dos Veadeiros, a tarde despedir-se do dia. Aquele cheiro estava a alguns passos dela, e mesmo pressentindo a aproximação, posto que o cheiro tornava-se mais e mais intenso, permanecia imóvel, exceto o repetido movimento de secar as mãos naquele pano de prato bordado de anis. Os olhos, agora marejados, reconheciam o que o olfato lhe anunciara há alguns instantes. Pode ver a imagem formar-se no reflexo da janela como um fantasma que surge do nada para assombrar vidas alheias. Mas, aquele fantasma já há muito estava aconchegado em sua alma e era indisfarçável a emoção que fazia seu peito subir e descer como a um navio, grandes ondas que se anunciam na tempestade, também fazem subir e descer. Haveria tormenta, era o que se perguntava, quando ele enlaçou sua cintura, enquanto depunha os peixes sobre o balcão.
Adelaide Paula - 00:27 - 29/07/2015 ouvindo Bob Acri "Sleep Away"