Pequenas histórias 95
Ele olha
Ele olha com prazer a vida. O sol lambe de leve o vidro, atravessa a janela e deposita sua luz no encosto da poltrona a sua frente.
Fecha “As Horas”, excelente livro de Michael Cunnigham, baseado no livro de Virginia woolf, Mrs. Dalloway, e que foi filmado tendo Mery Streep no papel principal.
Num relance seus olhos espiam o casal na calçada a espera de alguma coisa, talvez do semáforo abrir, troca um rápido delicado e gostoso beijo.
Sente uma pontada, pequena, mas forte de inveja.
Como se concretiza num segundo e num segundo se desfaz, a pequena ponta de inveja se dilui tomado por outros pensamentos.
Isto porque, seus olhos castanhos claros, sonolentos, às sete horas e quarenta, nesta manhã ensolarada, não para, não sossega iguais aos outros, no sono leve ao balanço do ônibus, e, sim, ficam navegando de um lado ao outro no mar de pessoas, de carros, de ruas apinhadas de agitações.
Sente-se confiante, sente-se parte misteriosa de um processo grandioso ao mesmo tempo pequeno, assim como sua escrita.
Às vezes ao ler um texto seu muito tempo depois, não acredita que foi ele quem escreveu que foi sua mão segurando a caneta ou que seus longos dedos de certezas, tenham digitado aquelas palavras.
Não acredita.
Leva segundo, minutos ou até horas para se convencer.
E ao ser tomado pela convicção, seu peito suspira aliviado, rele mais uma ou duas vezes e sorri satisfeito.
Mesmo assim não se acha poeta e muito menos escritor.
Até pode ser, até pode ser que o digam, mas a grandiosidade que se desenvolve aos seus olhos mostra que ele não é escritor e muito menos poeta.
pastorelli