O corpo

O corpo em sangue pede por justiça

O corpo não grita com a voz; está morto

O corpo grita com a voz do silêncio

e grita e clama pelos que se foram;

ele também já é um que se foi

O corpo não tarda

porque o corpo inerte fala em sangue

e todos olham assustados

Há homens nos morros, nos telhados;

Homens que matam e vibram pelo corpo abatido

O corpo sem nome não é ninguém

Ninguém sem nome não tem pai, mãe,

nem faz aniversário, nem ganha brinquedo

Todos olham assustados o corpo jogado

Sabem que há homens no telhado, nos morros

Mas não cedem às baionetas

porque o corpo jaz nos corações

e pede que lutemos

lutemos por todos e evitemos

que outros corpos sangrem no chão frio

Não me cantem a canção fúnebre, pede o corpo

Não depositem flores na tumba inexistente

Eu não existo em terra

Sou pó levado pelo vento, ensina o corpo

O corpo diz em silêncio

Todos sabem o que diz

Todos choram sobre o corpo inerte e frio e rígido

Não cantemos louvores e hinos

Não há Deus no corpo morto

No corpo morto não há Deus; há dor e saudade

Lágrimas derramadas em memória do corpo

Flores depositadas

O corpo morto

O corpo morto

Não deixemos o corpo

Lutemos para que o corpo vença a mortalha

Há homens nos morros e nos telhados

A mira está feita, o alvo escolhido

Mais um tombará, mais um sorverá lágrimas

de mães e pais desesperados e órfãos de filhos

Há homens nos morros e nos telhados

É preciso o corpo para que não cedemos à tirania

O corpo, o corpo

O corpo trafega por entre ruelas e becos

O cortejo não cede aos homens nos morros e telhados

O corpo desfila;

os homens nos morros e telhados

ignoram pais e mães desesperados

O corpo desfila em cânticos por justiça

Louvemos o corpo pela vida.