[Fabulações sobre o Demônio e o Eu-Tempo]

"A tristeza é aboio de chamar o demônio"

Mas será, meu compadre João Rosa, meu conterrâneo, será que você, que nunca afirma coisas no direto, que só faz mesmo é levantar poeira de dúvida, tem razão nesse remôo do pensamento?! Será? É... e não é — não é o que você fala o tempo inteirinho?!

Pois é... e falando em aboio, tangência do infinito,

Eu hoje amanheci pensando numa coisa:

Nunca entendi, siô, e não entendo até hoje, quando já estou pertinho de comprar o coringa, quando vivo no longe de tudo que mais quero, por que, quando eu tangia umas poucas reses pela invernada, a tristeza tomava conta de mim.

Meu cavalo castanho, de pequeno porte, mas muito solerte na arte de conduzir gado, meu cachorro Peri, que até nem era meu, era da fazenda, um filósofo de quatro patas, tão argucioso que era — os dois faziam passo com o meu sentir das coisas...

O gado, em passo lento, até parecia que ia por si, sabia as trilhas; verdade que era gado manso nos costumes, com 'ribada, eu nem tinha mesmo de me preocupar, talvez que alguma onça errante naquele capoeirão... [ainda outro dia, meu primo derrubou o caldeirão de comida dos companheiros, ao fugir, no galope, só do esturro de uma delas!].

Ara... eu, o cavalo, o cão, o gado e a distância... Aboio, aboio sim, senão, como ir em frente com esse aperto?! Deixa a lágrima rolar solta até secar o sal na boca; que me importa, se nem sei ao certo de onde ela vem?! [Vagueio... vario... já vou indo na planura de uma vazante...]

Pois então... eis a prova — Tanger o gado, até mesmo se for só em palavras como essas, faz meu o espírito voar pra longe; olhos neblinando... Sei, ah, e como sei: a estrada não tem pena, engole a gente, mas faz o contrário da sucuri; engole a gente começando pela cabeça...

(Aboio...)

Pensamento busca sempre referência no que foi, nos acontecidos de sabe-se lá quando... E então, dói, mas dói de um jeito tal que, se alguém perguntar, eu não tenho palavras bastantes; pois não é?! Agorinha mesmo: não estou dizendo nada...

Pois é, compadre, se o demônio vige é dentro de mim, será que é isto que você quis dizer, que a tristeza é um dos meus demônios aboiando dentro mim? Será? Será? Eh... virar palavra dos outros pelos avessos é comigo mesmo!

Tangências... aboio... tangenciar, sem nunca recruzar de compreender a impermanência das coisas, o mel da Morte em minha boca, a guerra com a absurdeza da vida travada desde menino, e esse sopro do vento que suscita em mim a coragem de caminhar para a Morte como se eu fosse para uma festa, pois afinal, tudo não passa de guerra e festa?!

(Aboio...)

Tem razão, meu compadre João Rosa, meu conterrâneo: a tristeza é mesmo um aboio do [meu] demônio! Sem afirmar, você diz o que deve de; é mesmo — Travessia — mas só se for para o sem-fim! E será? Será? Eu — perdido na paisagem de mim!

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[Penas do Desterro, 15 de junho de 2007]

[Excerto da minha coletânea "Vigências do Sertão" ]