Tempo Fluído
Na fluidez deste mundo líquido
A vida se dilui como sonrisol num copo d'água
Nada permanece
Nada se mantém sólido.
O mundo numa casca de nozes
Não responde todas as perguntas; há tantas.
Diluir-se com o tempo, amalgamar-se a ele,
Como a pele ao corpo; entrelaçar-se
Fundir-se de tal maneira que o universo se realize.
Nesse mundo líquido, sem a possibilidade do laço,
Nada se cristaliza para lembranças futuras; não há o que lembrar
Eis o desafio, eis a necessidade da resistência;
Eis a luta em que nos metemos.
Nessa batalha sem soldados; todos morrem.
Não há acordo de paz à vista
A bandeira branca não será hasteada.
Na próxima esquina, quem sabe outro corpo cairá
E a vida, sem que note esse fato, seguirá seu curso
Como a cachoeira que desce
Mesmo que à abaixo se encontrará com rochas.
A dor do parto não derrubará o imperador;
Tantas vozes gritam, tantas são caladas,
E a realeza em tudo se mantém.
Na rua a multidão sai em passeata
E a polícia, guardiã do Estado assassino,
Ataca com força e não cede aos gritos de mães assustadas.
A história não aceita rebeldes.
Escrito pelos jornais os fatos não corroboram os acontecimentos;
A versão oficial adquire status acadêmico; a banca está formada.
Multidões de analfabetos políticos
Vão às urnas depositar suas falsas esperanças;
Tudo flui como se o sol congelasse
Tudo vira pó quando do outro lado da rua
A menina pede no semáforo; falta comida, sobra sofrimento.
Tantos sonhos
Tantas esperanças guardadas para as bodas.
O grito já não alcança a montanha
E a criança não sorri para o brinquedo de madeira.
É tempo de fluidez
É tempo líquido
É o tempo do choro, o riso morreu.
No picadeiro da vida todos são palhaços
Apenas bem poucos detém o prego que manterá a lona.
Nada mais se renova.
Nada mais se produz.
Tudo é versão do que um dia foi;
Nos tornamos versões dos nossos antepassados.
A dádiva da vida não é mais o encanto;
O canto emudeceu.
A vida perdeu o senso utópico da felicidade.
Não há mais deleite com as gargalhadas;
O mundo ficou sério; tudo ficou cinza.
O riso rendeu-se à tristeza;
E o pedestal rompeu-se sob os pés.
Triste estrada percorrida.
Triste caminho traçado.
Não há mais do que recordar;
Não há tempo para a saudade.
A comunicação acelerou-se
E o mundo perdeu suas fronteiras.
Fala-se por gigabytes;
A auto-imagem difunde-se
Como se o tempo presente fosse eterno; tudo é imagem.
Tudo é eternizado nessa fluidez
Onde as relações não duram uma semana.
O beijo não traz o calor da paixão
E o abraço não ampara o outro, tudo é passageiro;
Tudo é codificado num jogo de sinais ensaiados.
Robotizam-se as ações para que a volúpia
Não ofenda a boa etiqueta;
E assim nada mais resta,
Nada mais sobrevive sem que a lembrança do passado
Pareça coisa de nostálgico;
E então dilui-se a esperança; a máscara torna-se a norma.
Seja feliz, minha pequena,
Diz o pai para a filha que não conhece;
O pai que saiu em viagem de negócio e nunca mais voltou;
É tempo de fuga,
É tempo de fugas,
É tempo fugaz.
A vida fluída se faz presente;
E o Homem já não se reconhece no espelho.