A carta
Sou o que houvera escrito com os pingos que houvera dito, mas discordo veementemente do tudo que dizes que fui. Que minha biografia não autorizada me faça acreditar ao menos que fui mais feliz do que pensei ter sido, e o pouco de cada amor a mim vivido seja descrito com requintes de superficialidade, como um protetor solar que me protegia de me apaixonar mas que me expunha ao sol como uma lupa.
Se cada sentimento puder ser descrito, caberá em meia dúzia de palavras e em um milhão de noites vagas nas claridades anacrônicas dos olhos fechados. Que as distâncias percorridas entre a boca e as tuas coxas me tenham feito ao menos entender o porque dos arrepios loucos. Que os olhares tortos de medo do amor me tenham feito menos vesgo que covarde. Que cada ponto final de uma declaração de amor se triplique em reticências antes mesmo que eu consiga dizer que deixei de te amar. Que meu corpo seja de novo o paradeiro dos seus corpos, numa mutação de gozos e sorrisos que por instantes desejaram a morte pra se eternizar no êxtase. Que o amor que grita aos poros do meu coração não se esconda mais nos vincos de meus pensamentos escassos de felicidade. Que cada dia de minha curta vida tenha valido por dois: por mim e por ti. Me resta oferecer a eternidade do meu sonho de amor que sempre me acordava na hora do final feliz - talvez por medo, talvez por medo, talvez por medo.
Sem mais o que dizer, me sinto na obrigação de contar meus segredos: eu sempre te amei. Mesmo em negativas espúrias, mesmo em silêncio, mesmo em poesias mal ditas, te amei. E saiba que quando te neguei a outra face foi porque eu já havia lido o final desse poema e me assustei ao perceber que tinha tudo pra ser um poema de amor - e eu não consigo dizer eu te amo. Por isso me fiz poeta, a falar de amor nas entrelinhas, a escondê-lo nos detalhes, a aquecer palavras frias com a lágrima que me cai enquanto teus dedos me escrevem; e fiz essa poesia em forma de prosa pra que saibas que quando pensavas em mim, eu pensava em ti; e talvez eu tenha sido o último a saber.