E O PALHAÇO, QUE É?
E O PALHAÇO O QUE É?...
“Acordei com recordações, enchendo meus olhos.
Nesse momento vi a saudade viver em mim”. Danilo Mendes
Drapejava, no topo do mastro, imponente pendão escarlate. Ao sopro da brisa estival, a flâmula exercitava-se, demarcando fronteiras. O ostentoso manto de lona, circular, pespontado em gomos vermelhos e amarelos, debruçava-se sobre cabos, barras, hastes, mastros e cordas. À força do braço, o vigor da batida, definia a cadência da marreta à estaca. Estais embrenhavam-se ao solo, violentando castas vertentes, alastrando raízes. Ao alumbramento de um matizado colar, sucumbira o negrume. A cintilação intermitente das contas emprestava à mantilha ar juvenil.
Trêileres, carros-reboque, caminhões, ônibus, circundavam, vigilantes, a praça de espetáculos. Cada núcleo familiar concorria à consonância e integridade coletiva: uma só confraria. Religiões distintas, raças e povos diversos, múltiplos mananciais de linguagem. Uma única expressão: a da milenar arte circense. Vestes requintadas e pequenas peças repousavam na cuidadosa rouparia. A sensibilidade das mãos, imersa no fascínio dos cosméticos, acentuava a beleza dos corpos e traços faciais. A conservação do vestuário, a alimentação coletiva e atividades especiais recebiam o concurso de profissionais da comunidade. A manutenção, revisão e disponibilidade de halteres, redes e trapézios exigiam o desvelo de peritos de longo curso.
Saudavam a alvorada rugidos, guinchos, bramidos, latidos e relinchos, que se contraditavam a sonoros trinados, gorjeios e chilreados. Punha-se a mesa ao café matinal. Na alvura dos lençóis, o cansaço ainda dormitava. Nos varais, a intimidade desnuda: o segredo dos talhes, a insinuação dos perfis. Criançada a caminho da escola. Garante-se a vaga em ato legal. À perfeição, busca incessante. Ao bom desempenho, ensaios constantes.
O cortejo incitava, pelas ruas centrais, multidões às calçadas. A experiência do idoso harmonizava-se à ousadia e curiosidade dos jovens. Por trás de janelas, olhares discretos, mãos comedidas afastavam leves cortinas. A banda, entusiasticamente, ao som de dobrados, musicava convites. A trupe reunia, indiferente a cores, credos e raças, esbeltas mulheres, vigorosos ginastas e personagens excêntricas. Desfilavam, arrancando aplausos e risos, hábeis malabaristas, arrojados acrobatas, elegantes e graciosas bailarinas, a gigantesca mulher barbada, Hércules – o senhor dos músculos de ferro –, índios norte-americanos – com vistosos cocares –, o enigmático senhor da magia, e pilares da arte circense: palhaços e anões.
Na face inocente, o olhar inquietante. Ao rosto marcado retornavam lembranças. A mão pequenina, revelava temor, e se amparava nas mãos maternais. O trator pachorrento arrastava gaiolas e jaulas. Inquietavam-se as feras ao ribombar dos foguetes. O chicote estalava, impondo obediência. O atavismo curvava-se à doma e o selvagem tornava-se dócil. Domesticava-se o tigre. Adestrava-se o pônei. Distribuíam-se ingressos à noite de estréia, tornando inviável recusar cortesias.
Palhaços em pernas de pau e monociclos equilibravam-se na audácia. O som amplificado passeava com o vento. Intercalava-se, a composições musicais, a programação com sotaque espanhol. Na bilheteria, a simpática senhora, comercializava ingressos e distribuía amabilidades. Ambulantes regalavam-se, aumentando vendas e acrescendo rendas. Aromas, bálsamos e cheiros confundiam-se no assar das carnes, no molho do cachorro-quente e no estalar de pipocas. Cestos e balaios ziguezagueavam, oferecendo algodão-doce róseo e azul, amendoim com cobertura salgada e caseiras balas de mel. A sirene ecoara pela terceira vez: estava próximo o descerrar da cortina. Um pequeno atraso aumentava a expectativa. Consumira-se o primeiro saquinho com pipocas. A sede e a premência de ir ao banheiro eram quase incontroláveis. Crianças... A ousadia sobrepunha-se ao temor. Por baixo da lona traquinas se esgueiravam sem receio a reprimendas.
A luz intensa dava lugar ao insulamento. Os holofotes derramavam fluxos de claridade no mestre de cerimônias: orgulhosamente, postava-se no meio do picadeiro, vestia smoking vermelho com caudas longas, calças de equitação, colete chamativo, cartola preta, gravata borboleta vermelha, chicote, botas até o joelho e destacado bigode preto. E o brado empolgante, ecoava, provocando arrepios:
– “Damas y cabelleros, respeitável público, com vocês: o mundo encantado do circo!”
Ao som de ‘The Circus Bee’, composto por Henry Fillmore, afastavam-se as faces do cortinado carmim. Ressoava um silvo estridente, dando ao corso passagem à arena. À frente, garbosos cavalos brancos, e venustas amazonas com longos cabelos. Ao término, astutos macacos traziam pôneis à rédea.
Fechavam-se os olhos a voos audazes. Na corda estendida, a intrepidez caminhava. No impulso dos corpos: o aéreo bailado. De um lado a confiança da espera, de outro a esperança na entrega. E no trapézio voejavam bravura e temores. Ouvidos cobertos, temia-se o estrondo. Fumegava o canhão, homem-bala lançado. E a rede aparava o humano projétil. Diminuía a tensão, imperava a galhofa; cambalhotas, cabriolas: hilários palhaços. E a inocência aflorava no riso pueril. No arremesso de facas, a caixa rufava. O disco rodava, acentuando o perigo. Olhos vendados, nervos de aço. E tracejavam silhuetas, arrancando murmúrios. Na destreza das mãos, lenços, esferas e cartas. Da cartola encantada saiam coelhos, ovos e pombas. Serrava-se ao meio a formosa assistente. Espadas varavam suspeitos baús. E o mágico sumia à varinha de condão. Na ponta das hastes os pratos giravam. Pirâmide humana, tochas ardendo. Longa barra de ferro, pedaladas no ar. E o cabo de aço era o chão do equilíbrio. Numa estrada sem retas, quatro motos roncavam. Tresloucadas manobras tangenciavam o perigo. E celebrava-se a vida no globo da morte.
Sucederam-se manhãs primaveris e tardes hibernais. A divulgação da chegada de um circo francês leva-me à infância. As recordações me entorpecem. No meu circo o palhaço foi rejeitado pela bailarina. Nosso destino, por vezes, embalou-se na ‘corda bamba’. Lançamo-nos em ‘saltos no escuro’. Mesmo assim, a lágrima incontida apanhou-me sem máscara, e a brisa sussurrou, saudosamente:
– “Hoje tem marmelada?”
– “Tem, sim senhor!”
– “Hoje tem goiabada?”
– “Tem, sim senhor!”
– “E o palhaço, que é?”
– “Ladrão de mulher” .
Jorge Moraes - jorgemoraes_pel@hotmail.com - maio de 2015