O Mundo que Habita em Mim

Sou o mínimo e o máximo de mim mesmo

Transito sem querer encontrar outros "eus"

Em tudo que faço, não me reconheço

Cada planta que jogo água

Cada prato que ponho à mesa

Não é senão apenas um leve sinal que estou ali.

Cortar legumes para o jantar

Pegar a panela e ligar o fogão

Essas banais tarefas em tudo simples e cotidiano

Chegam em mim como os raios de sol rompendo a aurora.

Descobrir nos temperos cheiros escondidos

Me transportam para tempos imemoriais.

Sei que cada aroma, cada fragrância de cada elemento

Traz milênios de sabedoria que a natureza criou.

Romper o cotidiano, transpor normas e regras

É nessa incansável luta que me deparo.

Os seres humanos são sábios, são ingenuamente sábios.

As crianças não contemplam as estrelas

O Cruzeiro do Sul não lhes atrai mais que uma bola

A menina acaricia sua boneca como a mãe a ela; o círculo se mostra.

O tempo passado rompe a memória como se quisesse gritar

Mas não adianta, a surdez coletiva não perde tempo; é preciso ganhar tempo

É preciso sair à rua e não se indignar; manter o sistema; ser passivo.

Não se indispor nem bradar por mudanças; cultuar a inércia

Como quem contempla totens e se curva ao general.

O copo sobre o balcão espera o cliente;

A rigidez do vício não tolera atrasos.

É necessário que todos obedeçam

É necessário o passo compassado da urbe calada.

O orador anuncia a autoridade sorridente

A plateia ovaciona sem saber de quem se trata;

O espetáculo não pode parar. Levantam-se as cortinas!

Ao fim do dia, cansado e faminto,

O operário não sabe quando chegará

Não poderá saber se verá o filho para lhe beijar;

Deitar-se cedo, eis o cronograma a ser seguido;

O tempo precioso do patrão não tolera essas amenidades.

Sair às ruas, eis o caminho necessário

Para que a pólvora não se perpetue como grilhão.

No ventre, a mãe carrega seu rebento em tudo esperança;

Nada mais real que a possibilidade do por vir, avante!

A indescritível figura pendurada na parede

Faz lembrar o dia em que a menina chorava por comida.

Tudo era triste, tudo era cotidiano, tudo era cinza.

Homens bem vestidos trafegam com seus charutos.

O menino lhe oferece graxa, não olham, passam rápidos;

A bolsa de valores fará o grande pregão.

E manchetes garrafais anunciarão a grande subida!

A miséria estará nas ruas como se fosse monumentos históricos.

A ambulância avança o sinal com suas sirenes ligadas;

Não há mais tempo, não há socorro;

A respiração dá sinais que sucumbirá

Ninguém abre caminho; o paciente perde pulso; choro dos filhos.

Na esquina perto das boates carros importados negociam prazer.

A menina que desconhece as sutilizas da vida; cede.

Cuidado! grita o homem que puxa a senhora que atravessa distraída;

Não deu tempo, outro corpo decora a cidade com suas boates

E lindas moças pintadas como quadro de Van Gog.

Já é madrugada.

A cidade quieta dorme sob viadutos, pontes e avenidas.

No extremo oposto do bairro nobre, alguém chora.

A voz rouca da mãe lamenta a perda do filho; ninguém liga.

Todos dormem o sono dos justos, dos puros e dos hipócritas,

Mas ninguém se importa

Se à porta da Igreja, repousa um bebê.

A cruz não curou o algoz

Também não se fez, por isso,

Mais amada, nem tampouco,

Abrigou o desamparado.

Lágrimas molham o lençol

Nada aconteceu

Do outro lado do Atlântico

O poeta risca seus versos.

As luzes se apagam

O espetáculo chegou ao fim

E a cidade avança, silenciosa e belamente escura.