O OLHAR FURTIVO

Estamos no Passo de Torres, rosnando melancolias e ausências, num dia de luminosidade pleníssima. Pertinho, o mar comemora ressonando seus cansaços, abrindo a boca, saudando o dia e morde levemente os meus pés. A brisa lambuza as dunas e afaga os cabelos em desalinho. O sol beija as flores nos jardins. Com pedacinhos de araçás nos bicos, os pássaros alegram a minha janela. Ela e eu estamos estáticos frente à placidez das ruas quase vazias. O cão vadio lambe as feridas, decerto conquistadas nas algaravias noturnas. Uma cadela prenhe coça o ventre. As palmeiras de pescoço longo parecem elétricas silhuetas ao céu de março. A poética está até na água doce espargida sobre os verdes e musgos. A palavra surge sonolenta de seus mistérios. E deita-se no berço de futuros e nuvens. Os ventos preparam o outono. Um canarinho do verão passado entoa sua canção agreste. A vida segue em sua placidez de inquietudes.

– Do livro O CAPITAL DAS HORAS, 2014/15.

http://www.recantodasletras.com.br/prosapoetica/5169766