MIL LÁGRIMAS - CÁ POR CASA
CÁ POR CASA
***
Quando penso o lugar onde moro, vejo o mar e sinto o vento soprar sobre um barco. Longas velas armadas me levam para o deserto que já foi uma floresta. Aquelas dunas áridas um dia foram cobertas do verde das árvores de copas altas e habitavam sonhos. Minha língua se estende até o meio do continente, habito ilhas verdes cercadas por expectativas.
Um dia o mar recuou sem sair do lugar, expôs a terra salgada enquanto a floresta avançava com suas pernas de lei acompanhando as marés. Os sonhos, como se deitados em solo fértil, migraram das águas para as matas e das matas para o continente. E tudo foi habitado. Cercaram as matas, criaram gado, aplainaram as colinas e construíram cidades - depósitos de expectativas.
Cá por casa, ainda hoje no tempo livre, as famílias vão até o litoral. Então os pais lembram seus filhos de que o mar sempre recua. E se ainda avançamos sobre ele içamos pontes, construímos plataformas e pescamos para matar a fome do mundo. Tudo conforme, um só mar.
Eu não sei do mar, não sei da floresta. Não sei dos sonhos nem das expectativas. Quando piso na terra, o sal que nela ainda há penetra minha pele. Sinto amargo na boca e um aperto nos peito. Minha língua se dobra e o som que me escapa é um lamento. É saudade do que não sei, do que não vivi, do que não tive. Talvez seja o brilho do sal no mar de lágrimas que cobre o continente o que me confunde.
Sei que é noite, e o frescor de uma brisa ancestral sopra do oeste. O céu pontuado de estrelas é outro leito salgado a desvendar. Oh! céu e mar salgados! Eu era apenas um homem em busca de si, serei ainda o mesmo depois de sair dessa desolação? Por certo serei menos homem por deixar mais salgado o deserto, mais salgado o mar sem floresta, os sonhos sem expectativas e o céu sem estrelas.
Esse deserto já foi uma floresta, nele minhas lágrimas são mágoas cristalizadas na areia molhada.
*
*
Baltazar