UM PLÁGIO PARA GINSBERG
Nota de Introdução – “Um plágio para Ginsberg” foi escrito quando eu contava então com trinta e quatro anos de idade e a mais grave de todas as doenças: aquela em que o doente não se reconhece como tal. Já me disseram um dia que toda nossa grandeza e a nossa desgraça reside em nossa consciência. Pois bem, isso não pode ser esquecido por ninguém que tente reunir em si um mínimo de caridade para ler isso que pretende, sem conseguir, ser uma espécie de “poema”. Duvido que assim possa ser chamado. Para que alguém pudesse encontrar um mínimo de sentido...para que pudesse dizer que é – de fato – alguma coisa, não bastaria ver ali qualquer rima..qualquer métrica ou mesmo a identificação disso que se chama estrofe. Além de ter lido “O Uivo” (do próprio Ginsberg) necessário seria conhecer pessoalmente a mim mesmo, Milton Pires, e fatos da minha vida cuja dor provocada aqui me travam a escrita. Mais: seria importante conhecer muito bem Porto Alegre e as lembranças que os anos 80 e a minha vida na Universidade Federal tiveram para que eu pudesse colocar tudo isso de uma vez só no papel dessa forma...jogada, vomitada, desprovida de qualquer sentido “maior” ou de “mensagem para o futuro”....Nada mais era do que um grito de socorro...Era só alguém escrevendo em desespero. Algumas coisas ali são de uma verdade devastadora pra mim. Outras são eventos possíveis ou imaginados, mas o mais doloroso é pura alucinação..
Um Plágio para Ginsberg
Milton Pires
Eu tropecei pelas ruas do Centro às 3
da manhã com 38 e garrafa na mão e
atravessei as pontes do Imbé carregado
por pescadores que não sabiam do Carnaval
E li Nietzsche como um jesuíta depois que viu
seu pai no hospício lembrando do enterro
dos meus quatro avós quando a Medicina
virou filatelia e a Cooperativa internava Cuba
Exorcizado por um pastor yuppie na madrugada
chuvosa do templo da Cristóvão eu tive pena de
mim mesmo amando mulheres que abrem
pacientes e doentes são por não abrirem as pernas
Marchando com o torneiro alcoólatra me escondi
na galeria dos chineses com medo da Imigração
que abriram o restaurante onde eu deixei o
meu relógio pagando o frango xadrez
Vomitando de Tramandaí à Santa Catarina, sob
calor de 40 graus a 160 por hora lamentando ter
nascido pra ver o pastor alemão atravessar quadras
correndo na multidão de 89 para finalmente pegar o cara
Escutando pop-rock na noite gelada da 24
bebendo uísque em copo de plástico enquanto
tramava a Revolução com toda raiva do brasileiro
católico que jamais esteve na Disney
Dançando nas prateleiras do Open, conversando
com domésticas falando mal de suas patroas que
botaram cornos nos maridos que brocharam
porque encrenca tiveram com a Receita Federal
Vendo a piedade adoecer numa geração de filhos da
puta que levaram choques até se divorciarem da lucidez
e mandaram a família se foder cantando Chico Buarque
para as psicólogas do TV Mulher onde tudo estava bem
Contando 25 dias sem sol naquela Rio Grande
de merda onde eu rezava para não beber
enquanto toda Física Quântica vira Budismo
bem na Copa de 98
Ouvindo putas e fuzileiros navais conversando em
três línguas pela janela quebrada do apartamento
gelado onde eu planejei doutorado sanduíche para
me esquecer do câncer da mãe
Vendo que todo Direito virou Política e
que toda Política virou Cocaína cheirada
na sauna de Brasília onde a Deusa
Chivas só falava inglês
Traduzindo pobreza como honestidade
para alegria das freiras que bateram punhetas
nos gurizinhos quando deram neles um banho
gelado e depois disseram “PT”
Rindo do Fukuyama porque a História
não tinha acabado e Jesus Cristo era negro
comunista veado que entrou sem concurso
no Reino de Deus
Com uma etiqueta em word pendurada
no pé lá na madrugada da Ipiranga onde
as gurias faziam chupadas para os caras
que davam plantão
Dando porrada no boliviano que tocou
flauta na Rua da Praia onde também
mediam pressão aproveitando para
fazer a greve quebrando mesas do RU
Comendo até engordar pra depois
queimar o relógio sem saber uma só
palavra do tempo em que se cantava
Hino Nacional
Dizendo que Marx tinha razão
quando chegaram os marines ao
som do Guns N Roses comendo
as mulatas em berço esplêndido
Que tinha pulgas e urina de rato
quando elas limparam a bunda
doída de benzetacil com o papel
velho da conta de luz
Como os anjos da noite santa da Farrapos
com 16 anos de HIV, braços picados e
olhos vermelhos na loucura da fome
agendada no SUS
Antes que a PM chegasse com os faróis
na cara do juiz, dentro do carro, cheio
de medo legítimo e tesão registrado
em cartório
Visível em meio à neblina entre
garis e jornaleiros e feiristas
da Porto Alegre maníaca do
orgulho de ser do Sul
Sentada de botas e saias na calçada
am pm, com uma garrafa de vodca
e o recibo frio do psiquiatra em
cujo consultório falava mal dos pais
Achando bonito fumar uma bomba
e cantando aquelas coisas dos
cabeludos de 68 que morreram
na loucura do ácido
Condenando o Vietnã mas
tomando um chope no Chalé
enquanto entregavam os caras
no DOPS do Tom Jobim
Lembrando no Bar da Bio
das letras de medo e de culpa
honestas como as frases dos
picaretas dos carros usados
Enquanto Freud virava muleta
da sociedade paralisada pelo dano
moral importante na declaração do
papa em fúria de bicho de pelúcia
Ganhando Prozac de graça
jurando que podia “mudar”
bem perto daquelas que gozam
daqueles que podem amar..
Porto Alegre, 23 de maio de 2005