carta anônima

H.,

um remetente fantasma escreve essa carta a um destinatário que talvez nunca leia. talvez nunca, talvez hoje. não, hoje não. o destinatário também é quase um fantasma. ele é onipresente, acho, e isso é estranho. quando apago as luzes, ele se deita ao meu lado e me faz um carinho nas bochechas. às vezes me assusto.. não sei lidar muito bem com coisas que não posso ver. então se um fantasma me toca o corpo, estremeço de medo, mas deixo. não sei como impedi-lo, confesso. me acostumei a senti-lo por perto. não sei se gosto, mas acho que sim.

o destinatário fantasma também me acompanha nas andanças da vida. de um lado pro outro, nos ônibus, nos carros de amigos e de outros destinatários, mas estes concretos, reais. recebem de mim o que o fantasma já recebeu (e, em um ou outro sonho meu, ainda recebe). entro em seus carros, em suas casas, envio de dentro de mim o que é menos profundo, mas envio. quando lembro de uns meses atrás, até me empolgo. transformo os reais em fantasmas, o fantasma em real. aí me entrego inteira, me divirto, "gozo à energia nossa", como ele disse uma vez. o problema é quando acendem as luzes. o quarto é desconhecido e enxergo quem está ali. se fosse quem eu queria, o quarto seria outro, a luz não teria sido acendida e eu não o enxergaria claramente. a não ser que voltássemos no tempo: luzes sempre acesas, o quadro no espelho fixo no teto. o sorriso.

o remetente dessa carta anda meio cansado. aliás, agora mesmo deveria estar prestando atenção em suas ocupações. mas o remetente é bem diferente de seu destinatário, que parece incansável. não só parece, acho que é. ele só se cansava quando nos amávamos. lembro que às vezes ele dormia a tarde inteira comigo do lado. mas era bom até se não era: observá-lo me agradava. ele conseguia falar comigo enquanto dormia. eu quase via seus olhos tranquilos através das pálpebras. quase.

não vou demorar muito por aqui, digitando essas palavras ansiosas por leitura, mas que, já sei, ficarão perdidas no meio de tantas outras deste mesmo endereço. vez em quando, vejo um carro como o desse fantasma que me ronda os sonhos e os dias. olho através da película e quase o enxergo. quase. devo dizer que, se me esforço mais do que devo, ganho uma dor de cabeça e um torcicolo, de tanto virar a cabeça pra enxergá-lo me puxando o cabelo, me empurrando contra a cama.. calma, eu falava de carros.. comecei a misturar tudo, talvez seja hora de ir.

querido fantasma, futuro doutor H., não me atrevo a escrever teu nome todo em uma carta tão maluca. acho que não és mais tão louco. ou, quem sabe, só tenhas te decepcionado com a minha loucura em excesso. peço aos céus: "Senhor, protege a minha loucura e me afasta de gente normal. faz com que minha loucura encontre um limite, mas não um fim. que eu seja sempre feliz, ainda que melancólica. que eu tenha crises de riso, ainda que também de choro. que eu conheça alguém que me goste assim, torta e estranha, excessiva, insana. Senhor, que eu conheça um fantasma que queira ficar. Senhor, que eu saiba ser meu próprio fantasma quando precisar".

sempre estarei por aqui. um remetente fantasma esperando a leitura de um destinatário ausente, mas tão presente. assombrando docemente a vida de uma louca-de-amor.

Luz,

M.

m l andrade
Enviado por m l andrade em 20/01/2015
Código do texto: T5108434
Classificação de conteúdo: seguro