Ela

Num certo dia qualquer( um dia é sempre um dia qualquer até que alguma desgraça aconteça), como esses em que o sol é forte, o frio prega nas nossas entranhas e a neblina cega nos dá a impressão de que nada existe para além da fumaça(e se a neblina for o estado natural das coisas?), Ela chega. Ela vem sem pedir licença, chega com toda a bagagem para ficar. Nem toca a campainha; vai entrando por baixo da porta, lambendo o tapete ao entrar, vagarosamente. Há pessoas aparentemente felizes nos cômodos. A televisão serve de pano de fundo para um perfeito cenário de comercial de margarina. A família vai bem, muito obrigado. Mas chegou o dia em que Ela adentra a casa dos Carvalho.

Ela chega silenciosamente – Ela usa todos os advérbios minuciosos a seu favor. Ela vem e vai, bem mais vem do que vai. Quando Ela chega para ficar, é muito difícil ir embora. Ela prega nas entranhas, Ela sufoca o âmago. Ela se utiliza de advérbios falsos para ficar. Ela precisa ficar porque aqui é o lugar dela. Sístole, diástole e ela nesse meio de bater coração, nesse meio de vida. Ela é um meio e um fim de vida. Ela não chega ao fim. Ela não tem um fim, tampouco um começo. Ela confunde-se com a felicidade, Ela apaga qualquer fiozinho de felicidade que algum coração sofrido tente irradiar. Ela sai nadando por entre as lágrimas que descem vagarosas, feliz como uma criança a brincar num tobogã pela primeira vez. Ela pula por entre os sapatos de pés cansados de tanto caminhar pela vida; Ela finge alegria quando na verdade a alegria não passa de puro desespero. Ela é um peso morto no peito; quem dera morto de verdade. Ela chega pra estancar o sangue que provocou, porque Ela é tão irônica quanto a vida. Ela ri dos mantras, Ela ri de Deus e do Diabo. Ela não deixa qualquer resquício de brilho por onde passa .Ela escolhe minuciosamente os corações. Um por um. Um por um. Minuciosamente.

Tempo é o que a Ela não falta. Parte do tempo Ela é, de certa forma. Parte da história, desde os primórdios da humanidade. Ela rasteja por entre os pés da família sentada ao sofá. Ela vasculha cada sentimento feliz, cada pensamento, cada desejo, cada tiquinho de esperança. Ela se ri da sua explicação semântica no dicionário – quem dera algum dia alguém conseguisse explicar a sua grandeza e magnitude; puro esplendor, pura metafísica. Ela rasteja como uma cobra pela casa, à espreita do primeiro que respirar, e, nessa respiração, exitar em viver mais um dia. Ela não existe sem a vida, mas vive da morte. Ela passeia por entre as gargantas, seios, estômagos, vértebras, músculos. Ela em tudo existe. Em todos os corpos, sentimentos, almas, vidas, folhas, nuvens, céus, mundos. Ela é uma paralela da vida – pegue este caminho e não encontre a volta. Ame e desame quanto puder- Ela estará lá. Ria-se do amor – é sua principal fonte de existência. Ame e estará a Ela submetido.

O pai, a mãe, os dois filhos. O pai respira com dificuldade, apesar da plena condição de seus pulmões. A mãe deita a cabeça em seu ombro. As crianças brigam por uma peça de lego. E Ela está lá, assistindo a tudo. Desempacota sua bagagem no colo da mãe.

-Mãe –Clara balbucia e a mãe já pressente qualquer pergunta de natureza capciosa – feitio da menina – o que é a dor?

- Dor? Que tipo de dor, minha filha? – A mãe a fita, preocupada.

-Qualquer dor, mãe. Dor de cotovelo, dor de estômago, dor de amor. – a menina parecia animada.

A mãe, já tão conhecida dessa tal dor, deixa escapar uma lágrima de seus grandes e belos olhos castanhos. Fita a menina e diz, calmamente:

-Dor, minha filha, é aquilo que a gente sente quando está vivo... – outra lágrima escapa, e outra, e outra...

O pai dá uma olhadela para a mãe que quer dizer algo como ‘’conserte o que disse’’

...e as coisas não saem como planejamos. Aí sentimos dor, Clara.

-E, mãe, mas qual é o pior tipo de dor?

-O pior tipo de dor, minha filha, é aquela que se sente sozinho.

A mãe consegue esboçar um sorriso. Tudo volta à mais perfeita paz.

Ela espreita por entre seus pés como uma cobra. Ela veio para ficar.

Giovanna Matta
Enviado por Giovanna Matta em 14/12/2014
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