O OUTRO DE MIM

O outro de mim veio

Não convidei, nem deixei recado

Quando me dei conta

Já estava ali, de posse de mim.

Não era invasor, nem estrangeiro

Era apenas a parte que eu desconhecia

Que eu sabia que existia; todos falavam,

Mas eu não conhecia.

Os espelhos na sala

não refletem minha imagem

É sempre outro que vejo.

Já troquei de espelhos

Comprei de vários tipos,

a imagem refletida nunca era eu.

Numa manhã acordo com barulho

De certo não é ladrão,

sou um homem sem posses

Tenho de meu somente o corpo.

O barulho persiste e aumenta

e entra pela sala.

Eu dormi sobre a mesa

depois de ler relatórios;

Sou um homem do meu tempo.

Movido pela curiosidade,

dirijo-me à janela, me assusta o barulho

Não entendo o que se passa; tudo é tão estranho.

Noutra casa vizinha à minha

noto que pessoas discutem; gritos

assombram-me mais que a noite plúmbea;

Sou impacientemente um notívago.

Aquela manhã não era comum.

É verdade que nunca acordei de bom humor;

não mente quem diz que acordo com cara de velório,

mas aquela manhã tudo era diferente,

Porém, algo em mim não era igual a outros dias.

Não acordei cantarolando, nem tampouco,

dando vivas à natureza; isso seria demais!

Sou um homem calorosamente frio.

Não ignoro minha rigidez; fui lapidado à ferro.

Os espelhos da sala não existem mais,

sem dar ouvidos no que eles me diziam,

depositei flores numa sepultura desconhecida,

Sou um homem espantosamente impulsivo.

No topo da árvore vejo a silhueta de um pássaro,

tento ignorar sua existência; pássaros me irritam.

O voo de Ícaro desperta em mim a dor da queda;

Sou um homem de antepassados.

A discussão dos vizinhos aumenta de volume;

não consigo retomar os relatórios sobre a mesa.

Preciso da solidão como o barco do mar;

Sou um homem misteriosamente contemplativo.

Sinto cheiro de café;

espata-me o quanto o cheiro adentra em mim.

Não resisto à insistência do cheiro;

Vou à cozinha, acendo o fogo; não tenho pó.

O chuveiro quebrado impede meu banho.

A pia cheia de louça me olha com reprovação,

o prato com torradas já duram cinco dias!

Sou um homem metodicamente relapso.

Os espelhos da sala não existem mais;

vou ao banheiro pentear-me; não tem espelho.

Escovo os dentes rapidamente, molho o rosto; saio.

Os vizinhos brigam com outros vizinhos; sirene.

De posse de sua possante arma, o soldado desce;

Silêncio.

Um disparo, correria, silêncio.

A poça de sangue denuncia um corpo estendido.

Silêncio.

Mãe grita sobre o corpo do filho.

Silêncio.

O pássaro voou,

e a manhã chorou suas primeiras gotas de chuva.