CORPO E ALMA
CORPO E ALMA
(Ivone Carvalho)
Fui além da sensibilidade que julgava ter. Fui tocada pelo vento que, desiludido com uma simples brisa, isolou-se num canto qualquer onde eu, por vontade do destino talvez, fui parar despretensiosamente.
As estrelas cumpriam sua missão de brilhar e encantar os olhos de quem se desse conta de que a noite foi feita para elas, já que é o período destinado ao repouso do sol que cedeu o seu calor durante horas a fio.
A lua... Bem, não me lembro qual era a sua fase. Entretanto, ainda que fosse nova, certamente estava lá, inspirando-nos, mostrando-nos pertencer aos poetas, aos amantes, aos enamorados.
O que eu ainda não sabia, naquele momento, é que encontraria, exatamente no vento, tudo que preencheria, dali por diante, todos os vazios existentes na minha vida.
Quem diria? Logo o vento, que eu aprendera não passar de um deslocamento do ar, algo impalpável, inodoro, sem sabor. Algo que, no máximo, poderia tocar minha pele, causar-me calafrios, refrescar meu corpo, sentir-me suavemente beijada pela natureza ou tocada por um anjo, quiçá pelo meu anjo da guarda.
E foi ali, naquele pequeno espaço, naquela inesquecível noite, que tudo mudou na minha vida.
Uma simples pergunta, uma resposta irônica mal-interpretada, um retorno injusto, um tanto grosseiro, seguido por um deslocamento para outro espaço.
Inútil! Mal cheguei e lá vinha ele novamente, o mesmo vento, para unir-se a mim, desta feita, para sempre!
Não me custou muito desvendar sua alma; bastou-me abrir e revelar a minha.
Conheci, inicialmente, um vento brando, suave, terno, que eu não identificaria como simples brisa, já que esta apenas engana, é passageira.
O vento, que se revelou para mim, tinha porte, classe, altivez, sabia o que queria, era determinado, transparente, extremamente sincero, sem jamais perder a candura, a ternura, o senso de justiça.
Descobrimos, imediatamente, que éramos dotados das mesmas qualidades, que tínhamos os mesmos princípios, as mesmas crenças, os mesmos sonhos, os mesmos desejos. Enfim, nos vimos idênticos, tal almas gêmeas. Completávamo-nos!
E me deixei ser envolvida, abraçada, amada por aquela criação divina, que tinha alma feminina sem perder a masculinidade, que também se deixou envolver buscando e recebendo os meus abraços, o meu carinho, o melhor que sempre existiu dentro de mim e que jamais foi dado a qualquer outro ser.
O vento que me tornou poeta! Que me fez ver, ouvir e sentir poesia em tudo que me rodeava, porque se fazia presente onde eu estivesse, sempre me doando as suas carícias, tangendo minha pele, penetrando o meu ser, transformando-se no termômetro do meu coração, soprando quente quando era do calor que eu precisava, ou frio, quando eu necessitava sentir o seu frescor no meu coração ou nos meus pensamentos. E sua ternura, seu cuidado, sua proteção, eram sempre intocáveis, irreparáveis!
Passamos a nos pertencer, um ao outro. Tornamo-nos confidentes, companheiros, cúmplices. Corpo e Alma. Um só.
Juramos jamais nos deixarmos. Sabíamos que uma separação nos faria doentes, vazios, insanos, incompletos.
Mas o vento, como o ser humano, sujeita-se a variações de humor. E, de simples aragem, pode se transformar num vendaval, num furacão, se tornando cego quando tomado de fúria, com ou sem razão, acelerando seu deslocamento de forma a arrastar o que encontra pela frente, deslocando árvores, tetos, tirando pisos, transbordando rios e mares, como se fossem lágrimas escoando incessantemente de corações amargurados, sensíveis, injustiçados, inconformados. Muitas vezes destrói inocentes, incapazes de acreditar na sua capacidade de injustiça.
E, como vendaval ou furacão, se torna insensível, desumano, egoísta, ofensor, injusto. Machuca, destrói sonhos, aniquila projetos, faz sofrer, abre chagas. Retira a beleza e o perfume das flores, deitando-as ao solo e as esmagando. Esconde o brilho das estrelas. Provoca a erosão, modifica cenários.
Cala a voz que deseja gritar, o sussurro sufocado.
Mas o vento é como o ser humano. Quando ama é suave, brando, beija nossa face, envolve o nosso corpo, penetra a nossa pele, se enraíza em nosso coração. Quando se torna feroz, fica irreconhecível. Talvez não tenha deixado de nos amar, porque nada existe na natureza que seja capaz de perder o seu perfume nato, sua cor original, sua beleza intrínseca, sua sensibilidade congênita, sua essência. Porém, quando se reveste de mágoas, feridas, desconfianças, também derrama seu pranto, buscando cicatrizar suas chagas, através da velocidade destruidora, esquecendo-se dos seus próprios sentimentos e do amor que lhe é dedicado.
Reverencio o vento que eu conheci naquele espaço isolado, pequeno, cujo único som possível de se ouvir era o dos nossos corações e da nossa respiração. Talvez nem isso, porque acredito mesmo é que ouvíamos tão somente as nossas almas! Era o ar que se deslocava sob uma ponte e que me deu a mão para ajudar-me a alcança-la e permanecer sobre a mesma, numa via de mão dupla, cujo caminho de ida e de volta sempre me levou ao amor.
Reverencio o vendaval e até o furacão em que ele se transformou, pois toda sua fúria foi incapaz de destruir tudo que ele me ensinou a sentir, todo amor que lhe devoto, ainda que ele tenha conseguido roubar as minhas esperanças e pôr fim aos meus mais íntimos sonhos .
Venero o vento em qualquer de suas formas, estado de humor, velocidade, porque sei que, mesmo oculto, sua essência transmite amor, beija minha face com um pequeno sopro, prova-me sua existência e sua presença, fazendo-me crer estar sempre acompanhada pelo meu anjo da guarda, pois, onde quer que eu esteja, sinto o seu perfume, o seu toque, ouço a sua melodia sussurrando em meu ouvido, garantindo-me que jamais me deixará só, vez que somos, indubitavelmente, Corpo e Alma.