QUANDO ELE SE FOI

Eu tinha doze anos quando descobri que a morte não escolhe idade. Um dos meninos mais bonitos da escola foi vítima de afogamento e meu sono foi assombrado por dias pelas cenas do velório e o clima abafado e sufocante daquele noite, mesmo ele não sendo meu amigo.

Aos vinte é que fui sentir essa verdade dolorida na pele.

Ele não era bonito, tampouco fazia o estilo garanhão . De um jeito todo particular se tornou meu oasis de juventude e conforto em uma turma de faculdade na qual eu não me encaixava. Quando ele surgia na porta da sala com sua bolsa enorme trançando-lhe o peito ficava tudo mais alegre, mais leve, a combinar com sua personalidade tranquila.

Tinha uma das letras mais bonitas que já vi e um pavor hilário de que eu visse alguns de seus erros de Português. Como um menino grande às vezes escondia o caderno de mim e pedia para outra colega verificar a sua escrita.

" Não deixe a Débora ver".

Eu ouvia e ria. Aliás até hoje o ouço.

Anselmo era só tamanho e meninice.Odiava quando ele faltava às aulas e ele faltava pra caramba, pois trabalhava muito e eu vivia bancando a irmã mais velha pedindo para ele maneirar no números de aulas que dava à noite. No fundo eu não entendia que meus pais pagavam a minha faculdade, os dele não.

Hoje eu estou aqui, ele não.

Era difícil irmos embora juntos e naquela sexta, depois de mais uma semana de rotina insana de trabalho ele me chamou para pegarmos o ônibus ; seu aniversário seria na segunda e ele estava só felicidade pelo bônus que iria receber.

Até nisso éramos parecidos: esconder as coisas boas não era a nossa qualidade mais forte.

Descemos no mesmo ponto, belisquei seu braço e disse:

- Para de matar aula, menino!- Ele riu e disse que iria aparecer na segunda-feira.

Foi a primeira e última vez que não cumpriu o que prometeu.

Na noite de segunda- feira as informações eram desencontradas. Minha mãe viu uma notícia no jornal da TV e não lembrava o nome das duas vítimas: dois professores abandonados em uma estrada, um morto, o outro em estado grave. Na manhã seguinte a foto do meu amigo estava em uma página policial no jornal da cidade,ferido, vulnerável, vítima de uma violência que me fugia a compreensão, seu corpo sendo retirado da mata como se fosse um entulho prestes a ser jogado fora.

Ele não resistiu,e em 29 de setembro de 2001 a visão que eu tinha do mundo tornou-se mais dura, cortante. Aproveitaram-se da sua doçura e deixaram em mim o gosto amargo da perda.

Ainda hoje seu rosto me é mais nítido do que os de pessoas com as quais convivi por mais tempo. Lembro da camiseta rosa,do "vamos trocar de lanche até passar por aquela mesa,coisa feia eu desse tamanho comendo Torcida e você com esse lanche natural". Confesso que ainda o imagino pelas ruas da cidade e a minha memória pelo menos me permite lembrar de seu jeito de garoto sem que as agulhas invisíveis da dor me penetrem sem compaixão.

Se Anselmo ainda estivesse vivo talvez a vida com suas rotinas e mudanças houvesse nos separado. Nunca saberei, e convivo com isso todos os dias. A única certeza que tenho é que trocaria todos os lanches naturais possíveis por carregamentos inteiros de Torcida ( de cebola, por favor) para que ele ainda caminhasse no mesmo mundo que eu.

Saudades sempre, meu querido!

Débora Consiglio
Enviado por Débora Consiglio em 28/10/2014
Código do texto: T5014756
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