DIA DESVIRGINADO

Acordou no horário habitual, sob as mesmas cobertas, atravessado por inquietações e acima de tudo mais velho. Não era aniversário ou qualquer outro marco, mas o dia desvirginado estava preenchido com uma nova vivência: um sentimento incomum e estranho que não alcançava o plano da consciência.

Lembrou-se da véspera. Tudo o que ocorrera desde a lucidez de alguns preparativos para o jantar até a embriaguez das conversas aprofundadas, algumas lacunas entre as idas e vindas de recordações e a chuva na madrugada a trazer hesitações sobre o trajeto. Perplexidade. Fechou os olhos e dormiu de repente, quase sem sentir abandonou a realidade para uma noite de sombras.

Acordou com o território desmoitado na alma. Privado das imagens oníricas, restou-lhe a vesânia para reescrever as verdades... Sem vestígios de ressaca ou de felicidade, perdeu o sono como uma reação ao dia redescoberto em alguma omissão.

Presa ao espelho, a face nua traiu a continuidade. As palavras perdiam o sentido e silenciavam naquele rosto de dia claro, os gestos eram encabulados e se escondiam sob as cortinas de suas ilusões amanhecidas.

Levantou por hábito. Não havia compromisso, mas pulou da cama e alcançou a porta. Gostaria de sair, mas para onde? Talvez tocassem a campainha ou chamassem seu nome... Silêncio... Desistiu e permaneceu emoldurado na janela. Na manhã de feriado, o mundo dormia sob seus olhos despertos.

Dia de ventos. Pinceladas marcam as expressões com o tempo redescoberto. Aos poucos, a silhueta ganha cores e um aspecto distante da realidade. O homem torna-se pintura. Quando adormece em si é contemplado pelos descansados olhos dos que acreditaram nos sonhos. A face moldada na janela é uma nova abertura para recriar o ser amadurecido.

Helena Sut
Enviado por Helena Sut em 12/09/2005
Reeditado em 16/09/2005
Código do texto: T49851