A cidade do infortúnio

Tão quente a ponto de desejar que as entranhas revisitem os membros externos com a ilusão de que o sangue refresque o inferno interno que me habita.

Sufocante em cada voz atirada no horizonte como o ditador de seu planeta particular, matando aos poucos a frágil rosa despida de sua redoma.

Perniciosa no ceifar dos sonhos, na precisão do corte, no estancamento da ferida aberta e infecciosa.

Os fios que tecem esta trama estão manchados com a vergonha dos homens mortos por seus semelhantes. A imagem que se faz de Deus seria, portanto, a da profunda abjeção; Castigador e punitivo. As mãos talhadas para encontrar o labor serviram como arma eficaz na execução; apagaram mais uma luz. Estabeleceram mais uma história, lenda, fábula que servirá como modelo para cada sujeito que ousar nascer aqui.

A voz amarga emite suas ondas em cada edifício desta cidade cítrica. A densidade de suas proposições culmina o desejo de vingança, desperta o ódio, a ira, o câncer que alimenta as vidas inúteis e automáticas.

O espetáculo de horror toma proporções diárias e entretém os submissos filhos que não se permitem calcular o peso dos grilhões.

Neste antro as formigas de Esopo são detentoras do papel principal. O trabalho liberta o homem, já dizia o portão do paraíso holocaustiano. O canto doce da cigarra se abafa e seus bofes escorrem pelos orifícios faciais já que sua presença desperta ameaça à vida provinciana desta cidade erguida sobre escombros da servidão. A melodia, o compasso, o ritmo não têm utilidade alguma quando o propósito da existência se resume a anular suas pulsões em busca da aceitação coletiva.

Carregue o dobro do seu peso em suas costas, pequena formiga, se quer pôr-se diante de deus, pai celestial. Sofra as intempéries de ser humano. A satisfação é fruto colhido por quem aceita rasgar a pele nos galhos mais altos. A queda é o princípio físico para obter os louros prometidos nas escrituras.

A cidade e suas engrenagens trabalham sem cessar para garantir seus descontentamento ou sua eterna conformação.

Araraquara te devora.

Sabine Kundera
Enviado por Sabine Kundera em 22/09/2014
Reeditado em 14/01/2024
Código do texto: T4971345
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