Réquiem pelos pássaros mortos

o ritmo desenfreado da cidade máquina leva com suas rodas as vidas daqueles que saem em busca de abrigo

tão logo se para na sarjeta e a memória irrompe carregando a reminiscência dos longos passos até chegar neste exato ponto.

a boca pede água fresca

é preciso empurrar as migalhas goela abaixo e aguardar que a digestão não nos tire a convicção de que algures, longe do ninho, a leveza tome conta dos nossos pés frágeis e fartos de andança

o frenesi é tanto

a máquina desordenada derrama espesso líquido negro por onde passa

manchando e pesando o dorso de quem leva na garganta o alimento e a subserviência necessários para garantir a existência de outra frágil criatura

a consciência não é atributo daquele que intenta desbravar os trajeto ignóbeis e desconhecidos e repousar sobre os fios acarreta, quem sabe, a execução, o juízo final

ao afastar os pés do chão é necessário saber que o apoio dependerá das imprevisões do tempo e do espaço

os fios, os galhos, gota d’água em piche quente que mormaça e derrete a cera que nos sustenta

aos que por acaso falharam restam os vazios públicos lavados por excrementos e despojos do que um dia nos serviu de escapatória rumo ao sublime

o firmamento pertence aos que bebem água suja das valas

aos que se lançam às alturas e se quebram; frágeis cascas de ovos

atropelados pelas rodas de borracha

aos que se entregam à misericórdia de ser livre

Sabine Kundera
Enviado por Sabine Kundera em 21/09/2014
Reeditado em 14/01/2024
Código do texto: T4970283
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