[Ninguém sangra à toa]
... se um certo Ninguém resolve sangrar à toa, deve ser por que está perdido, largado no ermo, e sem motivos válidos para si mesmo...
E então, sem motivos, sem nexos nem plexos, esse Ninguém sangra, isto é, escreve, pois julga que "as palavras são frágeis pontes lançadas sobre o abismo entre dois seres". E assim, teimoso como um bêbado, ele escreve... ainda!
Quando criança, Ninguém se interessava por cartazes de programas de circos que já haviam partido da cidade. A ventania lhe trazia aqueles papéis [agora tristes] misturados com a fina poeira da secura de agosto... Emocionado, Ninguém esfregava os olhos e corria atrás dos papéis na ventania da grande Avenida.
Ninguém sonhava... sonhou que deveria escrever e lançar os seus papéis ao vento como se fossem aqueles anúncios do que não mais iria acontecer, pois já eram entristecidos pela partida do circo. Cedo na vida, Ninguém desacreditou de todas as profecias: cumpriria o impulso de escrever... só por escrever!
Mas Ninguém tinha outra ideia mais ambiciosa: fixar os seus papéis escritos nos postes, nos muros das putarias, nos bares de ponta-de-rua, nas pedras que afloravam no rios em tempo de seca, e nos vagões dos trens que viajavam para outras cidades. Ter um público... mas para quê?!
Porém, desacontecidos os seus sonhos, Ninguém escreve sim, mas escreve para Ninguém... num mundo virtual! E aí, sim, Ninguém concluiu, ao modo dos teoremas, que a sua sangria era mesmo à-toa.
Daí, dizer-se que Ninguém sangra à toa! Será, será mesmo? Nem mesmo o argumento de Proust — "obras escritas para a posteridade, só a posteridade as deveria ler" — lhe seria de algum consolo, pois Ninguém não crê na posteridade e não tem, portanto, tal ambição. Ninguém não se julga à altura de ser um póstero!
Ninguém apenas sangra, sangra no Agora que tem diante dos seus olhos, isto é, escreve...
Sim, apenas e tão-somente, Ninguém sangra à toa!
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[Desterro, 12 de setembro de 2014]