Ponto de Luz

Um ponto de luz naquele imenso marasmo em que eu rotineiramente adormecia. Ele surgiu como surgem as noites de lua cheia, com reluzente presença, envolvendo-nos em tamanho encanto!

E, sem perceber, deixei-me atrair por olhos intensos, segui sua luz, até perceber apoiados meus pés na beirada de um abismo escuro, imensurável. E eu, a ponto de cair, senti a brisa cortante que vinha lá do fundo.

Agarrei-me à imagem nítida do seu rosto, como à um último suspiro de esperança, um último pedido. Pressionei minhas mãos sobre o peito, fechei os olhos bem apertados. O que eu fazia na mais insana consciência era ignorar minha única chance de retorno. Inspirei o aroma reconfortante daquela atmosfera densa e sem esperar um convite mais óbvio, decidi. Então me desprendi das amarras da própria vida. Atirei-me sim, e de costas, sem saber o que esperar.

Senti uma sombra revestir-me por um breve momento. Teria a morte essa textura aveludada? Ou era eu que me permitia devanear, aguardando o impacto do meu corpo inerte com o chão?

Ah, eu sentia tanto frio!

Minha severa paixão, concebida com imensurável entrega, acalentada sob a Luz do Amantes, deixaria cruéis rastros de folhas secas em meu caminho? Cairia eu em direção a tão infeliz destino?

Era capaz de prever uma sepultura de duros adornos. E meu nome, oculto por pálidos vestígios de neve. A memória guardada sob a tutela de uma luz fraca, a luz solitária de uma vela gasta.

Mas nada mais importava, após eu ter dado o primeiro - ou último - passo. Recobrei, aos poucos, a consciência de mim, do espaço. Do espaço que ele ocupava em mim. E de mim mesma não havia mais nada, nem pensamento que servisse de consolo.

Eu despencava desorientada, feito uma presa que escapa da emboscada. Quando vi, de relance, uma mão, estiquei, por instinto meus braços, e com as pontas dos meus dedos, enfim, fui capaz de tocá-lo. Uma presença aninhou-me ao seu corpo gentil, que instantaneamente ganhou a mais esperada forma. Nesse momento, todo meu passado tornou-se turvo.

Não existem sacrifícios vãos.

Não existem esforços vazios.

Enlacei-me ao seu torso, como se fosse possível fazer-nos um só. Finalmente ao meu alcance, consenti a mim encarar-lhe os olhos, nos quais, mesmo em seu reflexo, mal consigo encontrar-me. As faces, agora tão próximas, faziam-me enxergar a distância como uma simples provação.

O tempo, ao contrário do que dizem, não para, mas torna-se completamente indiferente. E seu beijo, o selo mais aguardado, no que dependesse de mim teria o correr de toda uma eternidade.

Senti o ambiente ser lentamente tomado por aquela brisa cortante de outrora, e vinha a fortalecer-se a cada metro que eu adentrava na escuridão.

Enquanto encostava meus lábios aos dele, na inquietude de um coração ávido de sentimento, como terra virgem em que se propagam, saudosas, as sementes, com o volver do período e do vento; assim eu desejava ser dele, propagar-me nele, tatuar-me na sua alma, fazer-me seu motivo, argumento e razão!

Enquanto o beijava, a atmosfera tornou-se fria, a profundeza tornou-se sombria, e a presença dele, minha última companhia, se esvaía aos poucos. A textura a minha volta tornou-se lúcida, e, num repente, pude distinguir o fim do precipício.

Senti um gosto amargo de sangue na boca.

27/08/2014

Kendra Hintze
Enviado por Kendra Hintze em 05/09/2014
Reeditado em 17/09/2014
Código do texto: T4950783
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