Tumitinhas
A menina estava apaixonada. Começava a ver o mundo e desconfiava que ele guardasse segredos. Pelas frestas das janelas, no assobio do vento, no sibilar das palavras que não pretendiam ser ditas, nas ideias terríveis de que havia um mundo dentro do mundo, que apenas esperava ser descoberto. Não lhe diziam muita coisa os adultos, certos de que as crianças vivem imunes à poeira que a dúvida levanta. Não sabiam que no mundo que há dentro do mundo esconde-se um lago de águas escuras, às vezes imóveis, às vezes turbulentas. Não percebiam que os nomes todos das coisas do mundo dentro do mundo andavam de mãos dadas como se fossem um nome só. Com o tempo, as mãos iam se soltando, se distanciando e parecia que as águas ficavam mais claras também. Por isso, ninguém sabia que o amor que ela alimentava era forte e denso e primitivo, como tudo que ainda não se perdeu. Mas era delicado também, porque achava graça naquela ciranda de sons e cores e nas luzes que brilhavam quando apertava os olhos. Nunca estava só, apesar do silêncio e da escuridão. Gostava de girar sobre o próprio corpo e depois deixar-se solta pelo chão enquanto o mundo continuava girando. Isso ajudava a revirar o que não entendia e o sentido vinha ter com ela. Longe da calma imaginada pelos adultos, no mundo que há dentro do mundo, conviviam em seu estado mais bruto todas as angústias, todos os deslumbramentos, e todas as desproporções. Mas estava apaixonada e o vendaval que soprou sobre ela não deixou nada no lugar. Os nomes das coisas já não serviam mais e diziam do horror que podia ser visto quando se desmembravam estilhaçando o que parecia bonito e sonoro. E entendeu a canção: “O anel que tu me destes... o amor que tu me tinhas...”.
Raquel Domingues Pires – 02/09/2014.