DA INDIFERENÇA DO OUTRO Á SINCERA PARTIDA

Que indiferença à fome do outro?

Não sinto fome, tenho na despensa

alimentos que não comerei.

Os miseráveis que passam a minha porta,

Não lamento por eles, mas por mim.

Não lamento seus estados, mas no ser indiferente que me tornei.

São famintos em tudo iguais a mim,

Exceto a dispensa cheia, o teto e a cama.

Eu que desdenho daquele que não sou;

O que sou?

A hora cativa dos meus pensamentos confusos,

Toma-me de assalto sem que possa fugir.

Eu que não penso noutra coisa senão em mim,

Sou possuído de uma patologia que me consome.

A indiferença contra a qual não luto,

Toda ela se impregna de meu ser, já não sei quem sou.

A roupa rasgada e o corpo gelado

Não tiram o calor das minhas felpudas vestes.

Tenho tantas, que descobri que muitas nunca usei;

guardo-as com carinho, pois, lembram cada fase

da minha vida. Sou um ser nostálgico!

Minha casa, eu sei, não é fácil mantê-la limpa,

por isso, tenho à disposição empregados. Dois deles

divide espaço com mais nove.

O outro disse que mora por ali, perto do trabalho,

E quando vai embora sente que a lua

ilumina seu caminho.

Essa imagem deveria causa-me certa inquietude,

Porém, não causa.

Não há nada de nobre nessa tosca imagem, cara aos poetas,

E filosoficamente inútil para dar a ela elevada consideração.

Receio o golpe inesperado da morte.

Receio morrer despossuído de mim, isto é,

Partir sem que tenha dado a mim o direito de recuperar o que fui.

Desde que nasci, e cultivei isso por muito tempo,

Dediquei-me a entender esse desequilíbrio:

Uns tem muito e muito mais, outros, mal tem direito à vida!

Essas memórias, rabiscadas como penitência,

Não me absolvem no que me tornei.

Ao olhar no espelho não vejo aquele que um dia se indignou.

A imagem que vejo está tão distorcida, tão indefinida,

Que o asco que me causa, me inclina ao desespero.

Nunca senti pavor.

A menina que morreu atropelada, bem perto de mim,

Pareceu tão contingente que o assombro causado a muitos,

Acendeu em mim a luz amarela para que não deixasse me contaminar.

A nobreza de tais sentimentos não enche barrigas!

Já ouvi, de vozes estrangeiras a meu universo de amigos,

Que sempre há uma luz no fim do túnel.

Ignoro, por modéstia e intransigência, esse tipo de comentário.

Não atribuo às ordens divinas nada que se diga respeito ao Homem.

Essa "pata de coelho" que todos sacam, tão logo o desespero chega,

Ativa, em mim, certa repugnância, afinal, tudo é mera construção.

Sinto falta do dia que chorei a morte do gato.

Um dia acreditei no céu.

Acreditei na possibilidade do Paraíso.

Acreditei No Crucificado, na manjedoura...

Mas, ao contrário do que me diziam,

O Sangue, a Cruz, não tornaram o Homem mais puro.

A crença que dai se construiu, tem servido sempre aos mesmos,

E o pobre e o miserável alimentados desse fel, não se rebelam.

A mordaça ministrada, com astúcia e engenhosa didática,

Tem mantido o rebanho sob controle.

Todo o sofrimento humano tinha/tem nessas tolices

Defensores gabaritados por universidades das mais prestigiadas.

Não raro vemos alguns desses risonhos sofistas nos canais de Tv;

São verdadeiros embusteiros e mercadores do conhecimento.

A frívola vida que hoje levo,

Não me autoriza o sorriso sincero, e pelo qual uma dia fui elogiado,

Porém, consciente que meus dias estão bem próximos,

Não posso me furtar de escrever essas últimas palavras,

Pois, serão elas, mais do que toda minha riqueza,

O único tesouro que realmente me orgulha.