ELE ERA ARTISTA...
Num desses dias de poesia real...
Então, eu adentrei pela sua porta grafitada
e me senti criminalmente ilegítima
Algo meio sem teto no meio alheio.
Ao toque da maçaneta, um rangido de dobradiça velha,
Qual joelho da gente cansada,
que range silenciosamente sem ninguém ouvir.
A princípio, não decifrei sua arte de complexa vanguarda .
O tempo, ali parecia estático, algo animal abatido a força.
Pelo grafite da porta da entrada, de desenho incompreensível,
soavam as cores fortes das realidades cáusticas,
entremeadas ao estalo do fogo e da madeira velha,
Tudo feito sua personal obra de arte.
Dentre nuanças pastéis,
interrompidas pelo derrame dum sangue vermelho invisível,
A casa era humana, a cena nem tanto.
Barraco soerguido de vida- a -vida sob sóis nublados
dentre aparentes tijolos suados de abandono,
fixados de forte reboco imprevisível aos destinos outorgados por outrem.
Sua fome zerada queimava no fogão a lenha talhada na unha.
O sorriso era forte, desdentado de possibilidades.
Os anos, talvez oitenta. Quem saberia?
Quem conta dum tempo judiadamente escondido
Nas entranhas d'alma que, por subsistência forçada,
só aprendeu a nos sorrir dentre rugas sulcadas desde a infância?
Mas estava feliz, porque, afinal, aprendera
A lhe auto injetar algumas unidades de insulina vital,
como se lhe injetasse vida aos mortos.
Com as mãos trêmulas nos passou um café dum cheiro ocre
A perfumar todos os mais obnubilados sentidos.
Sentamo-nos nos seus banquinhos instáveis, feito às suas mãos, de improviso como até então tudo lhe fora feito,
tudo equilibrado entre as pedras dum chão de cimento rubro e batido
em meio ao que restara do mosaico da sua pobreza vitalícia.
O gosto do pó preto coado era puro encanto do grão da terra genuína,
Daquele que ninguém rouba o sabor,
Porque ainda não nos foi permitido roubar
O paladar das tantas vitórias supra humanas não contadas.
Ele era o milagre daqueles que aprenderam a fazer
das tripas vazias...oração perene.
Foi ali que entendi tudo sobre ele:
Ela era artista...
Sua arte? O sonho possível.
A sobrevivência amarga num doce grafite de vanguarda.
E ele era a porta entreaberta da antítese tão sofrida que separa a realidade palpável da esperançosa porta para a felicidade metafísica.