O Legado

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Vocês vão correr, e nada de por a culpa em ninguém. Não vão correr por vocês. Vocês já tem demais. Querem que eu faça comparações? Humpf. Anotem aí: vocês vão correr pelo Zizinho. Pelo Miguel Nicolelis. Pelo José do Patrocínio, um dos patronos desta nação. Podem tomar de 20 a 0 dos germânicos. Não acho que o futebol deles seja tão bom assim. Podem tomar de 30, mas vocês vão correr e vão meter 120 bolas na trave deles. Vão começar a derruba-los, nem que seja com capoeira. Até todos serem expulsos. Não me importo. Vocês vão correr por aquele menino negro que em 1958, com 18 anos incompletos, mostrou uma coisa nova para o mundo. Ah, desencana, você aí do cabelinho estiloso, pode ser o mesmo número da camisa, mas.... acorda, né? Você deve, isso sim, correr e "dar pernadas a três por quatro". Ah deve, e vai. E vocês todos, alô, todo mundo vai correr, até colocar os bofes pra fora. Vão se esfalfar por aquela turma de 2002 que teve 100% de aproveitamento, vencendo os 7 dos 7 jogos. Ninguém ali se fez de besta. Vão correr pelo "baixinho" que desencantou o Tetra. Corre-se, ou antes, galopa-se, pelos que vieram antes. A isso dá-se o nome de respeito. Esporte sem esse valor não é esporte. E o Romário correu pelo Zico, Sócrates, Falcão, Toninho Cerezo, eles não levantaram o caneco, mas eles impunham respeito e correram, adivinha por quem? Você aí, com a tatuagem não sei de que, vieram antes de quem? Do Tri. Da verdadeira e única Copa das Copas. O resto é slogan. Vão correr pelo Everaldo, que jogou com a camisa 6, que era do Grêmio, pelo Brito, pelo Wilson da Silva Piazza, pelo Carlos Alberto Torres, pelo Clodoaldo que era do Santos e levou 5 italianos de uma vez só, pelo menino que era oftalmologista e jogou com a camisa 9, pelo Gérson, que tinha um GPS na chuteira esquerda, pelo Roberto Rivelino que tinha bigodes e uma turbina nuclear na perna esquerda. Vão ficar com a língua de fora e vão ter pesadelos, mas vão correr pelo Jairzinho, que mandou aquele goleiro Banks pro Beleléu. Vão correr pelo Rei, que então estava com 30 anos e no campo a única idade que ele tinha era "A Vida é pra Valer, Colega". Está certo que vocês vivem no exterior e talvez estejam um tanto alheios de que por aqui, tem gente que corre até com uma perna só, por uma merreca, mas corre, dá o sangue, sangue e músculos, por uma mixaria. Gente que se acostumou com tudo quanto é tipo de coisa, até com os piores tipos, mas, quando a seleção jogava no mundial, era possível dizer: hoje eu vi um homem sem pernas andar, vi um sujeito sem voz falar. Alô, coleguinhas, prestem bem atenção: seleção brasileira é um patrimônio nacional diferente de tudo que sua cabecinha possa imaginar. Não estamos falando da Petrobras, da AMBEV, (ai, ai, tudo líquido....), não senhores. Os teutônicos podem ganhar de 49 a 0, mas vocês vão correr. Ah, vão. Vocês são ou não são profissionais? E vão chutar no gol 200 vezes, cavar 450 escanteios, vão entrar de carrinho, vão chutar a bola pra fora do estádio, vão passar rasteiras descaradas nos caras, não vem com esse papo de que o técnico isso, que o esquema tático aquilo, pro escambal essa retórica. Vocês são responsáveis. A seleção é um patrimônio brasileiro como Shakespeare é um patrimônio britânico e Goethe um patrimônio alemão. Entendem? Não é tangível, não pode ser tangível. E sempre foi poético. Inventivo. Raçudo. Brejeiro. Manhoso. A Seleção Brasileira, crianças, não é um órgão governamental criado para hipnotizar as massas, embora poderosos abusem dessa brecha. Não é uma marca a ser usada por publicitários, embora eles tentem. É, como dizer, uma espécie de ectoplasma gigante que vem de cima e desce até certa altura para habitar um palco suspenso. Ali o gênio entra em ação pondo em movimento uma espécie de arte. Mesmo perdendo, impõe respeito. A Seleção, infantes, é algo que foi duramente lapidado palmo a palmo à custa de vitórias, mas, vejam bem, vitórias limpas, esfuziantes, dançarinas, fulgurantes, isentas de cambalachos e acima de tudo, históricas. Por isso vocês, repito, vão correr, porque estamos tratando de um mundo à parte com a missão de socorrer moralmente nossos outros mundos despedaçados. Alô, Coleguinhas, quando aquela camisa entra em campo a palavra virtuoso entra em cena - algo que alia a prática a excelência. Só técnica é pra aqueles caras de talento capado. Futebol é arranque, mas arranque mágico. Homem não é máquina. Vocês vão correr e cada corrida que vocês derem, mesmo que os visigodos façam 50 a 0, vocês começam a tocar de chaleira, a dar chapéu em 3 ao mesmo tempo, a fazer embaixadas que nem nos anúncios de cerveja, a mandar de trivela, de bica, de canela, mais a bicicleta, o que vocês não podem é deixar barato. Isso não, de jeito nenhum, isso eu não permito, isso significa cuspir no Vavá, no Mané, no Gaúcho, nos dentro e fora de campo, na molecada que tem passado a eternidade fora de todas as coisas, não só neste tempo presente mas em todos os tempos. Nós não temos a Quinta Frota, a RAF, a Torre Eiffel, o Big Ben, a Torre de Pisa, etc. Nós temos a Seleção Brasileira. Uma entidade inexplicável que, durante um mês, a cada 4 anos, opera uma espécie de curioso transe na maior parte de nós. Entendem? E quando aquelas 5 estrelas entram em campo elas podem tudo, inclusive perder, e de lavada. Mas jamais podem virar motivo de chacota.



(Imagem: Zito e Pelé)
Bernard Gontier
Enviado por Bernard Gontier em 14/07/2014
Reeditado em 21/08/2020
Código do texto: T4882220
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