A boa nova, dai-nos hoje

Minha carne não serve, é estragada. Deveria ter deixado eu lá na esquina em que me encontrou jogada como osso roído. Talvez lá os ratos viessem e roessem as pontas dos meus dedos, as minhas orelhas e quem sabe todo o meu coração. De dentro da minha boca e dos meus ouvidos poderia ter saído baratas e dos meus poros todo o veneno que acumulei na vida... Sou uma vadia, pecadora, não há salvação em mim porque o pastor já dizia que Deus ama o pecador, mas abomina o pecado! O pastor, aquele traste que me jogou na sarjeta...Eu era ainda um menino adolescente, servo fiel de Deus e da igreja. Ia todos os domingos a escola dominical e gostava de cantar louvores. Nasci no evangelho e fazia dele o meu escudo, mas a igreja me reprovou. Os poucos amigos não se aproximavam, zombavam de mim e sobre mim os piores insultos. Minha mãe dizia que eu era uma vergonha, meu pai me batia e jogava na cara coisas que eu nem entendia, não entendia aos onze anos de idade a maldade do mundo e da gente de Deus... Tomei dez Lexotan, talvez em dez minutos faça mais efeito, me deixe morta, apague a visão e todas as imagens ruins que há em mim. Em mim aquela manhã de domingo, na hora dominical de receber a palavra quando ele chegou e me levou ao escritório de atendimento pessoal, pôs um hino tão forte que falava das cicatrizes de Jesus. De portas fechadas, amorosamente pegou em minhas mãos e me fez sentar no colo dele, alisava meus braços e pedia que meu coração ficasse calmo. Era tão terna a voz daquele homem que aos poucos estava entregue a sua vontade. A música do hino alta para que ninguém nos escutasse, eu no colo dele e ele a me abraçar dizendo que me tinha como um filho. Senti a mudança do corpo, senti algo criando volume, senti quando pegou minha mão e a pôs em seu peito. Dizia que eu podia pegar sem medo, sem medo foi abrindo a camisa e dizia ser aquele momento nosso. Era um homem bonito, meus sentimentos confusos, as cicatrizes de Jesus tocadas no ar e meu corpo tocado de um jeito que nunca havia sido antes. Fechei os olhos, abri os olhos e já estava sem camisa, me abraçava e passava suavemente a barba por nascer no meu pescoço. Minhas mãos estavam em seu volume e de súbito me beijou os lábios, pôs a língua na minha boca e nem tinha voz para gritar. Ele dizia que era o meu pastor que ali estava e estava para ajudar a ovelha a encontrar o caminho. Foi tirando minha roupa enquanto a música se repetia. Pediu que eu o fizesse de microfone e no grande volume louvasse com júbilo. Era confuso para mim, mas ia obedecendo por uma mistura de querer e medo... Lembrava do versículo do Bom pastor que ama as suas ovelhas e de obediência aceitava as ordem sem questionar. Meus onze anos não me rendia tanta força e determinação para não aceitar. O pastor ofegava, pegada minha cabeça com força e saciava as vontade dele. Eu obedecia e não sabia se gostava ou se tinha medo. Tirou a minha roupa e não sinto mais partes do meu corpo, acho que o remédio começou a fazer efeito, espere, não precisa chamar ninguém, deixe que a coisa role do jeito que tem de ser, e foi assim que de costas, ele passava a língua pelo meu corpo, roçava em mim e falava palavras que ainda não conseguia decifrar. Ele me decifrou, descobriu o meu segredo e aos pouco foi tentando encontrar a senha: passava os dedos em mim, molhava as pontas com a própria saliva, no início tudo era incômodo, mas ele dizia que era a vontade de... Era a vontade porque tudo que passamos já estava escritor no livro da vida e nos poucos momentos que me resta, já não sinto os movimentos das pernas, como não conseguia movimentar naquele momento em que ele me invadia sem pena e sem dó. Uma dor infeliz, as pernas imóveis, ele todo dentro de mim e lágrimas nos meus olhos. Aguentei todo o movimento, aguentei calado o pastor domando a ovelha até sairmos da sala como se nada tivesse acontecido. Dolorido passei a me calar, a não querer sair de casa a não ser para a igreja. Meu pai agradecia a oração do pastor, minha mãe de felicidade oferecia almoços e pequenas lembranças. Vestia-me de calça e camisa de mangas por vergonha do meu corpo e nas missões e viagens ele pedia aos meus pais para me levar, eu não queria, mas tinha de ir. Numa dessas ele me pediu para se vestir de mulher: levou peruca, salto alto, saia, blusa, uma calcinha e maquiagem. Ficamos em um hotel afastado e gostei do que vi no espelho. Aquela sim era eu, eu quatorze anos, uma princesa. Mudei, revoltei, abri a boca e fui expulsa da igreja e de casa como obra do inimigo, do demônio que estava a atrapalhar a obra do criador. Fui criada ali, o meu pastor me guiou, depois me abandonou. Fui acolhida por uma tia, depois pela vida, na vida encontrei o meu corpo, mudei, fiz a minha identidade. Deixei o menino para traz, trouxe a mulher de mim para fora, mas minha carne é estragada, não sirvo mais para nada. Uma sede avassaladora dentro de mim que não passa, uma dormença nas mãos e uma vontade de dormir. Eu o vi algumas vezes, dormimos juntos e foi bom, mas não foi bom o abandono. Ontem, à noite, eu o encontrei, o quis, o levei para onde quis, fizemos amor como antes, ao som de um hino de aleluia e na aleluia o acertei com o meu punhal mesmo entre as pernas e o deixei lá com uma cicatriz no pescoço e uma rosa vermelha na boca, depois comprei uma cartela de lexotan, tomei com cachaça e arriei na esquina onde você me encontrou. Por quê, mãe? Devia ter me deixado lá, não sirvo para nada, lembra? Não tenho se quer mais vínculo como você...Esquece, vai, ai, um aperto grande no coração, acho que a ovelha virou uma cabra desgarrada... Se puder acender uma cigarro, eu agradeço.