Miocárdio
Miocárdio escabroso, pavoroso, faz-me bailar a ritmo tortuoso, derrama-te em mim e tende piedade de nós, os pobres que amam! De tantos cortes e estilhaços toma agora outra forma, sendo homem torto, incompleto, espairece em resto, e retira do pericárdio todos esses cacos das paixões estúpidas tuas que tanto te ferem. E, ah!, nesses dias desleais como oraria por ti se houvesse alguém a quem orar… pois agora és apenas réstia de luz em carne, e carne essa tão saborosa e densa nascida de meu próprio anelo.
Preciso prová-lo, és músculo tão suculento, porém esdrúxulo a me forçar a continuar vivendo sem necessidade; mate-me logo, suplico, para que possa enfim devorá-lo sem culpa! Olvido-me vagamente que a cada batida tua, a cada passo teu com o sangue que corre nas veias pelo meu corpo, a cada trote desse corcel rubro indomável, morro um pouco mais, apanho cada vez mais pelos punhos teus. Ah, Miocárdio, querido, adormece, respira, para um pouco com esse teu ritmo de vida tão incessante, morre comigo por uns segundos, não me bate ou tortura mais.
Tens coragem de matar a cada pulso teu eu, mancebo enamorado? Mas sabes que o perdoarei se o fizeres, meu amor, bem me conheces… Sabes que sempre o perdoei. Só lhe imploro uma coisa, e que lembre-se dela agora e para sempre: não me sufoca mais, Miocárdio, não me asfixia, não me seda sem ar parado em minha garganta. Não me mata subindo pelo meu pescoço e acabando em minha boca; teu amor é pútrido e ácido ao mesmo tempo que é inacreditavelmente doce…