VOZES NA MADRUGADA - A Pedro Galuchi
Na manhã de 06 de junho de 2014.
Texto de 1996
Pela janela, junto com a aragem fresca, chega o rumor de suas vozes. Uma delas monologa, interminável, com esta ou aquela irrupção de interlocutoras menos prolixas; outras irrompem com alguma interjeição admirativa, ou contestatória, ou enfastiada. De repente, estão todas a falar ao mesmo tempo.
Motos passam, interrompendo, com violência, o fluxo das vozes secundadas pelos gritos do casal de gatos fazendo amor.
Desaparecidas as motos, a veemência dos gatos e das outras vozes vem repleta de indignação por tão ridículos apartes. Também para nós, boa parte da história que vinha sendo contada na língua desconhecida perdeu-se no ar, irremediavelmente. A voz inicial retoma a narração e os trechos perdidos pela plateia vão, aos poucos, se reintroduzindo, em fragmentos, fragmentos que nos permitem, se não retomarmos o fio da narrativa, pelo menos o seu clima original.
Essas vozes, acrescidas de outras e de outras e de outras, vão tecendo a madrugada, como os galos um a um vão tecem a manhã no poema de Cabral, enquanto nos quartos e em impotente silêncio, cada um de nós sente o impulso irracional de invadir cada um desses quintais e morder, e morder, e morder as vozes desses cães e do casal de gatos, essas vozes que não nos deixam dormir.
Texto-embrião do DESTESSITURA, crônica também publicada no RECANTO.
Abraço grande, amigo.
REPUBLICAÇÃO.