ÓCIOS DO OFÍCIO - A J.Estanislau Filho
Na manhã de 06 de junho de 2014
Texto de 1989
Um dia completo a escrever a escrever a escrever, a desarquivar palavras, umas tontas, outras sábias, umas santas, outras pecadoras (como se houvesse alguma diferença), a fazer a liga da massa, atenta ao ponto certo, que se descuidar, desanda, a preparar o recheio de imagens, ideias (estas, com muito cuidado, que em excesso dão azia). Untando a forma e a fôrma, com pouco óleo (muito óleo aumenta o nível de colesterol no poema, no poeta e, em certos casos, também no leitor).
Como todo reino é contraditório, abstrair-se do mundo, como certos celibatários, para gozar o puro, o silêncio (como se houvesse esse puro, ou ainda alguma caverna para platônicos retardatários).
Esquecer o estômago faminto (não se pode servir ao mesmo tempo a duas fomes). A casa desarrumada, os papéis implorando ordem, os deveres civis a espreitarem a memória e a memória retrucando que poeta-funcionário a praticar de vez em quando um abono por causa de certa doença chamada poesia jamais foi exceção, senão destino a pouco pecúlio e a algumas vergonhas efetivas e eletivas, isto tudo levando-se em conta que a poesia nunca é catarse pois, se o fora, tudo se resolveria muito simples no divã do analista.
Não atender ao telefone (os amigos compreendem até certo ponto, os cobradores vêm direto ao apartamento e os inimigos não costumam telefonar).
Ficar o tempo todo atenta, para que o poema não queime no forno.
Finalmente, à meia-noite, quando as bruxas se soltam, dizer com profundo alívio: Hoje ganhei minha alma. Como alma não se ganha nem a poeta é um Fausto às avessas, acaba-se por perguntar a Pessoa: Haverá ainda, Poeta, tempo para Almas e para o Encoberto, neste mundo em que o Mito se compra por preços módicos e a perder de vista? E, Poeta, se o houver, tal tempo, quem me paga por esta alma, já que fiado só no Dia de São Nunca?
Uma vez feitas tais perguntas decisivas nem um pouco novas, que nada nunca é novo, como diz o Eterno Retorno, de tudo somente um consolo: não fora o homem um bicho sem respostas, haveria Céu ou Inferno pior do que o de Dante e congêneres.
Vamos dormir, poema, que ninguém é de ferro, e isto também já foi dito, só não me lembro neste instante do nome do Poeta que o disse, perdoem-me (acho que Drummond, mas não tenho certeza). Vamos dormir que, felizmente, as perguntas também adoram cair no sono.
Abraço grande, amigo.
REPUBLICAÇÃO.