Azul

Houve um tempo em que as casas eram azuis. Com velhas árvores nos quintais, de raízes à flor da terra. Despudoradas árvores de raízes nuas. Em seus galhos, os ninhos. Moradas de tico-ticos, sabiás, carruíras e outros mais. Nesse tempo, nos quintais das casas sempre havia cães. Pulguentos, frajolas, sem raça, nem guarda faziam direito, tão mansos que eram. E árvores davam frutos: laranja, limão, maçã, abacate, pera, pitanga, caquí-chocolate. Nesse tempo os tempos também eram azuis. Se dizia boa-tarde, boa-noite, bom-dia, ao se passar por alguém a quem nunca se viu. As estrelas do firmamento tinham nomes de mulher: As Três Marias, a Estrela Dalva, e outros tantos que inventávamos. E, ao apontar alguma delas com o dedo, cresciam verrugas em nossas

mãos. E os dias passavam...lentos.. preguiçosos...

Hoje é tempo cinzento. Nos quintais árvores não dão frutos, são só ornamentos. Os dóbermans, rotweilers e pitibuis não são cachorros azuis. Casas se vestem de estranhos matizes, e muitas se escondem atrás de altos muros e gradis. Não dizemos boa-tarde, boa-noite, bom-dia ao vizinho do lado a quem sempre se vê, e os vizinhos da frente não nos veem e nos são invisíveis. Velozes são o tempo e os dias. Nem mais percebemos direito as nuvens e o céu, e às estrelas nem nomes lhes damos. Mas aos olhos dos menininhos e menininhas de hoje, o tempo, as casas, os cachorros, o céu e as estrelas, decerto ainda ostentam aquele mesmo azul. Não, o azul de que lhes falo e que habitava minhas retinas não era bem uma cor, era um estado de alma incontaminada. Como é a alma de qualquer criança de qualquer tempo e lugar, tal como outrora foi a minha.

Nelson S Oliveira

Nelson S Oliveira
Enviado por Nelson S Oliveira em 04/06/2014
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