MONÓLOGOS DA PAIXÃO

Eu não vivo sem grandes estremecimentos. Para pessoas assim, pra quem a intensidade está acima da quantidade, os sonhos se sobrepõem à lógica, o desapego é água para a sede de interação com o semelhante. São os anônimos nas praças extasiados com o intinerário de uma formiga, os que percebem a grandeza de um gesto simples, os que perdoam. Essas pessoas não suportam amarras. Sofrem neste mundo organizado e castrador. E, submetidas a uma condição de aprisionamento e tolhimento das possibilidades de se expressarem, tornam-se infelizes

Você fala que o amor demanda tempo. Tempo pra se conhecer, perceber as mínimas coisas, fazer ajustes. Assim ele será forte e valerá a pena.

Mas a paixão é irracional, ela bate como raio, do contrário não seria este estremecimento em dor e êxtase. E isso não demanda tempo. Nem se constrói com o conhecimento. O que se constrói é o amor. Até ficar tão construído que a gente não aguenta mais e quer correr.

Meu deus é Dionísio e morro à mingua sob a perfeição rígida de Apolo. Eu amei a bailarina do Soldadinho de Chumbo, ela era sonho e deslumbramento e mesmo com sua trágica morte nas chamas, ainda assim eu queria ser ela, só pra ter aquele êxtase de estar no centro de um palco, um sonho, uma miragem, solitária mas livre na sua dança e plena de si mesma.

Naquele momento, todo meu ser transfirgurou-se ao tocar de leve o tecido de tua camisa. Como hipnotizada , ali tão próxima, e aquele gesto foi como a maior ousadia, as pontas dos dedos apenas sentindo a leveza do tecido, um segundo e já te erguias e eu recolhia a mão trêmula. Impossível que não percebesses aquele verdadeiro vendaval que soprava ventos devastadores. Mas eu vislumbrei um tremor nas tuas mãos ao juntar a caneta e tua pertrurbação que te fez derrubá-la novamente. Só que tudo não durou mais que alguns segundos e abriste a porta como sempre, nada mais havia pra mim.

Mas ao ganhar a rua, havia um calor de sangue que ferve, e amei sentir a vida pulsando em mim . Então fui até o bar mais próximo e sentei-me para saborear toda a plenitude que quase me sufocara.

Estas muito próximo, e de repente me olhas por cima dos óculos e sei que estás lendo nos meus olhos a estupefação , a expectativa, o medo. Eu digo a primeira bobagem que vem à cabeça para sair desse sofrimento que é ter você quase me tocando com sua pele e ter que renunciar sempre.

Eu tinha unhas azuis e um sopro tardio de juventude. Andava pelas ruas saboreando a atenção das pessoas e movia-me como num cenário. Só em saber que iria vê-lo no dia seguinte estremecia de leve e o coração batia mais forte. Felicidade de se sentir viva. Transbordamento de vitalidade. Assim é a paixão, ela nos joga pra um lugar de onde o resto da humanidade é só um distante cenário visto da janela de um avião. Estamos completamente absortos em nossa felicidade exclusivista.

Ele chegou até a mesa e eu, com o rosto acomodado sobre alguns casacos, custei a dar-me conta daquela presença. Então me ergui meio desajeitada e ao descer o degrau, perdi de leve o equilíbrio, indo me apoiar em seus braços e nossos rostos se roçaram levemente. Tocava uma música lenta e os corpos muito próximos, avaliavam-se cuidadosos. Era inverno e eu vestia blusa e uma jaqueta de lã desabotoada, Nâo levou muito tempo e ele passou os braços ao redor de minha cintura, por dentro do casaco, deslizando as mãos sobre a malha da blusa como quem acaricia. Senti um leve estremecimento. Eu disse a ele que às vezes ia tocar piano no clube num palco sombrio e cheio de teias. Ele pareceu se divertir e falou-me sobre viagens. Então, uma hora depois, quando nos despedimos, eu já pairava a uns cinco centímetros do chão e sabia que nunca esqueceria aquele rapaz. Um mês depois ele iria, após um acidente de carro, para um lugar onde não se sabe "se memória desta vida se consente".

Noite de carnaval. O som da batucada enchendo o espaço, cheiro de flores agrestes na praça . Alegria despreocupada , expectativa. Espero ansiosa a passagem da escola de samba. Num relance sou envolvida por uns braços e nossos rostos quase se tocam neste movimento de surpresa. Logo as pessoas, as flores, a rua e até a escola de samba vão ficando cada vez mais longe de nossos sentidos

Uma voz anuncia a passagem do bloco. Respiro fundo o cheiro da noite e uma leve brisa me fazem estremecer.

Ele me aperta junto a seu corpo e dançamos. Sua tez bronzeada me dá calafrios. Faria qualquer loucura pois aquele homem é abusadamente sensual e bonito. Ele sorri como sabendo do que se passa em minha mente. E eu, deslumbrada, nos meus dezesseis anos, só quero ficar assim, presa a seu corpo, despudorada, saboreando aquele instante de paixão e arrebatamento. Uma menina sentindo-se mulher plena e desejada. E hoje é folhetim esquecido no sótão, amarelado pelo tempo. Mas na memória, fotografia intacta e fogo que reacende a novo toque.

Porque eu não consigo dar nome ao que me move em tua direção? Eu só sei que já entrei neste rio da cabeça aos pés, um mergulho cego. Quando viajo em teus escritos sou moradora de tua casa, tenho aconchego de tuas cobertas, sou amada e posso esperar o nascer de um novo dia. É madrugada e agora sou eu quem pede para apoiar a cabeça em teu ombro. Dormir assim, sem pressa, dormir apenas. E na paixão que me transfigura, a resposta a todos os enigmas.

tania orsi vargas
Enviado por tania orsi vargas em 04/05/2007
Reeditado em 11/03/2008
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