Eternidade sólida
Quero dizer-te estas coisas e tantas outras que restarão nos recantos eternos do Universo, que se perderão nos vendavais ignotos, que ficarão para sempre afundadas pelos caprichos da vida. Saiba que jamais nos reencontraremos. Esta é a vez una e única, ela tanto nos reúne na intersecção quanto não se repetirá. O presente das mãos do Criador é este que conhecemos, inefável, supremo e insubstituível. Sei quando dialogamos em comunhão de espírito, sei que falas comigo e eu te respondo, que tanto eu ouço tua voz quanto ouves a minha. Sinto os fios dos teus cabelos em minhas mãos, a suavidade dos teus dedos entrelaçados aos meus. Sinto os teus olhos sobre mim, perscrutadores e o convite dos teus braços. Percebo quando ficas de pé ao meu lado, quieto e pensativo. Então tu me abraças. Não, nunca tenhas medo, nem remorsos, preocupações, que de coisa alguma te sintas culpado. Não inventaste o amor. Também não sabes como tudo aconteceu, de onde veio, de que foi gerado. Eu também não saberia apontar por qual porta entraste. Havia uma zona escura, cuidadosamente camuflada. Ali não havia apenas sombras, mas breu, escuridão total. Era o absurdo, o improvável, o zero, o nada, o vácuo, a turbulência dos astros. Era o triz do triz. Uma pequenina fresta o sugou, puxou-o para dentro e se fechou para a eternidade sólida. Foi assim que aquele espaço desconhecido se tornou o Paraíso, os jardins, o Éden, o utópico e o ideal não pertencente ao mísero ser humano. A chave do pecado de se permitir conhecer, de ousar violar. A tradução perfeita da macieira. Não, não tens que pedir perdão. Nem tens que reconhecer ou admitir. Somos a experimentação da química inicial, somos o exagero quântico, somos o cântico de nós mesmos, somos a inconstância. Somos o sacrifício e o último segundo diante do precipício; o eco da queda repercutindo vale afora, o fundo mais fundo do mais fundo abismo. Somos o átomo. E o último ato. Que a tua consciência siga suavemente tal como as pétalas das mais nobres rosas da natureza. Que a tua seja a respiração de um anjo. Que persigas a tua estrada e, ao enfrentar a tua jornada, edifique a tua igreja. Passam os tempos, passam as águas do mar e as do rio. Passa o voo das aves do estio sem que imprimam nos ares as pegadas. Passa o pensamento, some na terra fria. Escorrem as águas das chuvas pelos bueiros e levam sumiço. As gotas de orvalho refletem a estrela da manhã. Se algum dia choraste, olha a noite festiva com as cintilâncias das estrelas. Elas são as tuas lágrimas. Tu é que me deves perdoar por haver fraquejado como guardiã do meu ser. Por haver dormido e dormitado. Por haver cessado a vigília. Se isto que sabes tivesse acontecido, então não seria, então todo o encanto se perderia. O segredo que habita o botão de uma rosa não existiria. Seria comum, imperfeito, humano e perecível. Não estaria dentro de mim e dentro de ti uma partícula divina e indevassável. Não é a carne mais que essa divinitude. A completude vem do impossível e da vitória sobre o nunca. Você criou gigantes mais imponentes do que essa forma desesperada de amar. Quem sabe se nos soltarmos as mãos voaremos livres, livres como o espírito dos mistérios. Quem sabe não haverá mais incidências e nem ranger de dentes, quem sabe o mar contenha o suficiente sal que redime. Esta é a carta representativa da impotência absoluta da palavra, da letra, desenho inócuo, signo arbitrário. Esta mensagem é o avesso de si mesma, incapaz, rude, ineficiente, ineficaz. É o desencontro das esferas, o desordenamento _ caos inextinguível _ o implausível. O insolúvel. O esgarçado, o indizível. O torpor mais grave. Este é o perfil do mais absoluto começo, da origem do conceito de origem. Pertence ao local onde tudo ficou lá mesmo, de onde não se sai, de onde alguém não se evade e se fragmenta. Por isto faço do princípio a espera do inesperado, o perigo e o cuidado. Talvez fosse preciso desavessar o manto do antes e retirar as sandálias do devir. Assim seriam coerentes as peças do brinquedo cósmico. Mando por a ferros a poesia. Ela ousa se atravessar à minha frente. Incinero as palavras porque são avezinhas perdidas. Devolvo a paz de se estar inocente, de não saber-se. Devolvo a vertigem. Devolvo...