Arapinha e o salgado do doce mar
Acordei com um som de pássaros imaginados soltando versos na minha janela. Um barulho de mar, ao longe, carregava todos os maus presságios. Noite dormida tem sabor de pão com queijo na chapa.
Peguei uns trapos e fingi que costurava. Lembrei dos meus poucos tempos de balé e da minha impossibilidade de me dedicar a algo tão demorado e exaustivo. Tinha pressa de ficar nas pontas. Não deu certo.
O bom dia de meu pai estava repleto de alegria. Lá estava ele, em meio a jornais, criando seus novos porta-jóias. Artista dos bons. Sempre a inventar arte.
Lembrei de um amor que, um dia, "invertebrou" e se quebrou e me quebrou inteira. Quanta dor. Chorei meses a fio. Hoje, olhando para esse rememorar, cato as lágrimas e penso: - Deveria ter largado tudo no mar. Até a mim.
Aí me vem à mente a alegria de minha filha, então pequenina, quando lhe dei um boneco - feio de doer - chamado Arapinha. Ela abriu a caixa com aquelas mãozinhas e quase caiu para trás ao ver o troço, que até hoje não sei se era um pato ou um ganso.
E relembrando ainda, vejo meu filho pequeno, com suas cuequinhas engraçadas a me receber na porta e eu tão cansada, mas sem deixar de sorrir ao ouvi-lo dizer: - Oba, chegaram os meus peitinhos! O sacaninha mamou dois anos e seis meses. Experiência inesquecível. Ao menos para mim.
E assim, nesse vaivém da memória, de coisas reais e imaginadas, o dia se estabelece quente e sem vento. À noite, na abandonada Itapuã de Caymmi, todas as muriçocas entram como vampiros afoitos em busca de sangue.
E entre sangue, mar e amores, as dores parecem anestesiadas pelo fazer cotidiano. O tempo, em sua marcha, caçoa dos primeiros passos, dos primeiros beijos e, claro, das primeiras das inúmeras rugas que se plantam.
Por um instante, tudo faz sentido e tenho uma antiga certeza retomada: nunca será doce morrer no mar.