DEVANEIOS DE UM HÓSPEDE INCÔMODO

Tudo em mim é uma vaga saudade

um desejo infinito de saber onde está

Cada pétala de flor, gota de orvalho

Mesmo um longínquo quase ignorado

canto de sabiá balança em mim

e me domina e entorpece de exagerada felicidade

A incerteza do duradouro momento

que se congela numa fotografia

é ele em mim uma passagem que segue

Das noites que me encontro despido

em meu quarto de hotel barato

nem as copeiras, pobremente vestidas,

dão-se ao trabalho de me olharem

Pelos corredores transito em busca

de uma vaga e vã tateante cegueira

que já ignoro por quanto tempo se apresenta

Mais um hóspede, apenas isso

me garante certa autoridade da exigência,

afinal, mesma barata, a diária será paga

O fardo com que pensamentos me visitam

não causam náuseas, mas um tremor,

leve, diga-se de passagem, insiste

Meu médico não receita exames nem se dá o trabalho,

porém, tenho por ele tanta admiração

que muitos dos meus amigos até me agradecem a dica

Tenho escrúpulos, sou um homem de escrúpulos

brada aos borbotões o abominável frade

aos que à rua passam apressados

As pobres almas voaram bem antes de aterrizarem,

seus raquíticos esqueletos não suportaram

a indiferença tirânica dos homens educados

Nem com a chegada da noite com sua exuberante lua

pode despertar libidinosos desejos,

que nos casais harmonicamente constituídos

incita esperançosos e abençoados rebentos

Transitam pelo passadiço público

os mais variados tipos humanos, todos,

imbuídos de obrigações que nem eles entendem,

laboriosamente saem, após a despedida mecânica,

para o cadafalso que os espera até o fim dos tempos

A fina flor que passeia por corredores

decorados com a mais rara das espécies florestais,

nem quer saber se seu auspicioso gosto

levará ao caos comunidades que dali tiram seu sustento

O cigarro, que um distraído desavisado deixou à beira da mesa,

se auto-consome como o bêbado que chora de pé ao balcão;

duas existências, duas vidas largadas ao gosto do amargo do fim

Meras quimeras, meras vilanicas veleidades acrescidas

de melancólicas páginas de um romance qualquer,

invadem o corpo sedento daquela que espera a volta do amado

O homem de toga caprichosamente dobrada,

como um rei adentra à sala justiceira

e a plateia ansiosa por vingança desfere olhares servis

O douto julgador, num silêncio que beira à morte,

abre o volumoso volume recheado do minucioso delito

O pobre coitado, teimoso por ter superado a sina

daqueles que não viveram a primeira infância,

calado e vigiado por robustos guardiões da ordem,

já não ignora seu destino que por um ou outro meio,

será selado em benefício da malta dominante

No corredor escuro do hotel barato,

e ignorado pelos serviçais, como ele,

acorrentados aos píncaros pelos financistas,

todos, cerrados em pensamentos desconexos,

alimentam a cadeia alimentar onde serão engolidos

A saudade de um tempo que não existiu,

como o sol que todo dia nasce, somente ela,

temida e amada por aqueles que sonham primavera,

somente ela, mais forte que a própria vida,

mantem esse hóspede em eterna estadia

À rua a vida segue em ritmo cada vez mais acelerado,

o semáforo, sempre verde, nunca indica hora de parar

O tempo, mera formalidade métrica para mais zeros,

não perdoa a quem dele espera benevolência;

enganaram-se todos os que dele pensaram saberem tudo

O menino corre sem saber para onde está seu destino;

na redação do jornal o exímio jornalista

prepara a matéria que alimentará o açougueiro de plantão

É noite, a lua no alto ilumina pobres casas ao longe

A cidade dorme seu sono esquecido