[Fotografia de um sebo em Albany, NY]
Disparos, assaltos da memória... não sei a razão deste relance: recordo-me, a esta hora manhã, da tristeza que senti ao folhear livros num sebo, em Albany, NY. Páginas amareladas de incontáveis pocket books, livros em hard cover com nítidos sinais de manuseio, autobiografias de pessoas importantes [e quem não é importante... aos próprios olhos?], cartazes de shows há muito acontecidos... e as velhas estantes.... Livros que vão passando de mão em mão... até... a decomposição? Quem sabe o destino de um livro de sebo? Voltar ao sebo, talvez...
Mas para mim, todo o sebo de Albany teve um destino: o de viajar comigo no tempo. E agora, décadas depois daquela única visita, volta à minha mente, neste instante. E para minha angústia, volta sem que eu tenha a menor pista da razão do surgimento dessa lembrança! Posso, misteriosamente, até sentir aquele cheiro de mofo característico dos velhos livros... Impossível não lembrar de Freud e a sua maravilhosa discussão sobre a permanência das coisas passadas na mente ["Civilization and its Discontents"].
Entristece-me pensar que eu estou errado: não é o sebo de Albany que retornou à minha mente! Não, na verdade, a sua fotografia borrada é mais um assalto do tempo, um ataque direto ao meu ser sitiado nesta ilha flutuante que desce a corredeira... É uma prova contundente de que nada sou, ou antes: eu e as minhas circunstâncias somos nada. Afinal, eu e estas palavras somos nada, somos seres para o esquecimento, seres para morte certa. Ou, quem sabe para estar a bordo das lembranças de alguém que nem conheço?
Nada vale nada... exceto os prazeres que vivi, as horas de amor, o desejo ao rubro, o gozo sem duração... a fruição do gozo supera, de longe, o solitário prazer de aprender que, felizmente, não me abandona nunca! Durante o gozo, o tempo se desmorona, cessa de assaltar a gente. O gozo é a única arma que eu tenho contra o assalto do tempo. Certamente, durante a cavalgada do gozo, aquele sebo de Albany não tornaria a criar vida em mim... ah, não!
Saiu o sol, esse incômodo, e um bem-te-vi cantou do outro lado da avenida. É a dura realidade [do tempo?]... que seja, que seja, pois eu não vou me matar agora.
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[Desterro, 11 de janeiro de 2014]