AMOR RACIONAL

Tarde chuvosa. Meu pedaço de mar está todo cinza e as duas pequenas ilhas que vejo pela janela do escritório estão tristes e da mesma cor. Neste cenário de absoluta introspecção sou compelida a pensar e repensar na vida e no amor e na graça e porque não dizer na desgraça e na fatalidade de amar sem medida.

Revisito conceitos e preconceitos movida por um sentimento de perda e frustração que desencorajaria até mesmo grandes heróis da mitologia grega ou mesmo o olimpo inteiro.

Insofismável característica tem o amor, em regra, de ser realmente um sentimento racional, tese que há muito persigo inspirada e influenciada não por filósofos e outros donos da verdade, mas por um velho, ousado e sábio médico, Cristiano Frederico Samuel Hahnemann, nascido no século XVIII, que abandonou a terapêutica praticada em sua época para tornar-se o pai da homeopatia, fazendo-se cobaia de suas próprias experiências e elaborando novos conceitos de cura a partir da injeção do agente causador da doença em seu próprio corpo.

Penso no velho Cristiano porque também tenho por estreita porta de ingresso nesse novo mundo minha própria experiência de amor, tornando-me cobaia de mim mesma e inaugurando um laboratório sobrenatural, invisível, inaudível, imperceptível para qualquer outro ser neste mundo que não sejas tu que me lês, ou outra pessoa para a qual eu mesma queira mostrar.

Considerando a análise dos elementos terrenos e celestiais do complexo a ser investigado na órbita do amor, e as imprevisíveis variáveis que surgirão durante o processo de investigação, antevejo a necessidade, como em todo laboratório sério, de catalogar pelo menos duas cobaias e por isso tu que me lês estás também incluído neste espetacular experimento. Espero que aceites de bom grado e afirmes fiel compromisso de isenção de interesses.

O projeto inicial de tal ensaio quer demonstrar que o Amor, em regra, é um sentimento pessoa e é racional, e tem por escopo o deslocamento estrutural de contendas, animosidades ou outros sentimentos torpes e desgraçados que possam fazer ruir as almas e o patrimônio das pessoas, quer seja moral, intelectual, material, psíquico, não representando este breve arcabouço "numerus clausus".

Há grande distância entre os conteúdos da paixão e do Amor, o que não raras vezes confunde o expectador perplexo que assiste reações comuns de fúria e brigas entre amantes que se possuem em larga escala como donos domésticos uns dos outros. É o sentimento de propriedade que normalmente governa tais dissensões, e isso não tem nada a haver com Amor.

Qualquer pessoa que se encontre sob efeito de um sentimento tão forte que penso não ser possível existir em grande escala no mundo pode descrever percepções incomuns, naturais e sobrenaturais. Ao longo do tempo, e somente do tempo, a paixão desgovernada pode transformar-se em Amor, ou em um tipo específico de amor, se entendermos as infinitas variáveis aplicáveis.

Se este sentimento fosse dominado pelos instintos de uma pessoa apaixonada, certamente ela estaria a beira de um colapso nervoso ou outra conduta perigosa de enfrentamento e demarcação de território, ou então estaria empreitando emboscadas para minar as resistências existentes e alcançar meu intento de única dona.

Ao contrário disso, aquele mesmo olhar, úmido e anestesiado, mergulha em dor e resigna-se e prostra-se diante das verdades por enquanto inconfessáveis e destituídas de significado para muitos. A amargura faz brotar gotas de quinina nos olhos e não fosse o ardor puramente racional que margeia este sentimento tão forte e sem medida, impondo limites razoáveis e mantendo-o prisioneiro em quartel fortemente vigiado, em célula de segurança máxima, poderia sim dizer-se o contrário.

Mas o interesse em não causar nenhum constrangimento ou perda pro destinatário do sentimento mor é que torna o amor racional ao extremo, sujeitando sua vítima (aquele que ama) ao martírio da eterna espera, sem nada exigir ou programar, fracionando seu instinto (ser irracional) e abrindo espaço para sóbrias conclusões a partir das premissas de cuidado e zelo já estabelecidas por ambos.

Ancelma Bernardos
Enviado por Ancelma Bernardos em 10/01/2014
Reeditado em 30/07/2014
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