Autobiografia
O vilarejo que vou descrever é no interiorzão de Minas e tem só uma rua principal, que começa na placa “Bem Vindo(a)”, passa pela pracinha e termina na igreja.
Perto da pracinha, mora uma velha atriz em um sobrado com vista para o coreto. Já se aposentou há muito, e agora pouco sai da sua terra natal, mas adora receber as crianças da vila para comer pé-de-moleque e lhes contar as histórias de suas peças do tempo de moça. Logo ao lado, uma família de cinco pessoas mantém um barulho contínuo na parte central da vila. São as três adolescentes em crise enlouquecendo seus pais: a mais velha, meio riponga, inventou de comer flores do jardim da praça e fica cantando o dia inteiro a canção “Lucy in the Sky with Diamonds”. A mais nova, metade do cabelo azul-verde-desbotado, roubou a corrente de prender o cachorro e vai para a escola com aquilo na cintura, fazendo cara feia pras pessoas na rua. Mas o que dá mais trabalho pro casal de advogados da vila é a filha do meio: com treze anos cismou querer ser modelo e, por se aliar à agência da cidade vizinha, já desfilou até em São Paulo!
A única igreja existente é uma confusão só: o altar tem Santo Antônio,três Budas, Nossa Senhora Aparecida, um baguá bem no centro, o livro de Allan Kardec aberto e um enorme Yin e Yang no teto.A cerimônia do padre compreende todos estes elementos, o que satisfaz muito os moradores, fiéis àquela estranha instituição. Mas não é só em horário de missa que o padre deixa a região da igreja cheia de gente:bem atrás dela é onde fica a sua casa, onde moradores de todas as idades costumam ir para pedir conselhos, auxílio nas decisões. Quem gosta muito disso é a esposa do padre- além de manter a mesa repleta de quitutes mineiros, adora levar os visitantes ao quintal para ver suas plantinhas, em especial o belo jasmim, que faz uma sombra deliciosa no final da tarde.
O vilarejo não recebe muitos visitantes.Volta e meia aparece alguém com uma ideia nova pra instalar na vila, mas logo percebe que não vai rolar e volta pra casa.O último que veio e ficou é um dançarino de dança de salão que dá aula pras mocinhas todo sábado a tarde. Ele é meio desengonçado, coitado, mas suas intenções são boas. E a música ressoa na vila inteira, fazendo todo mundo se mexer um pouquinho.
Há uma série de moradores esquisitos neste pequeno interior no meio do nada. Tem um cara que fica o dia inteiro fazendo vocalize dentro de casa, mas não tem coragem de cantar pra ninguém. Tem a professora de português e inglês, que faz palhaçada pras crianças gravarem a matéria, o rapaz cachaceiro do buteco copo sujo que volta e meia está rolando na grama de algum lugar, umas meninas muito tímidas que ficam vermelhas toda vez que não sabem o que dizer, tem um cara que tenta tirar carteira de motorista há uns dez anos, um senhora totalmente apaixonada por ninguém sabe o quê, um escritor todo maluco, tem a turma dos esportes radicais,uma galera cujo prazer é estudar, outra que prefere fazer nada...
É muita gente diferente para uma “cidade” tão pequena, de fato. Mas são como uma família. É uma delícia ver como todos se dão bem, se visitam,interagem entre si. E como toda noite, ao se reunirem no coreto da pracinha, fazem os meus sonhos mais lindos.
(Texto escrito em 4 de setembro de 2010)