ENTRE A SOMBRA E A LUZ

 
Como toda moeda tem sua cara e coroa
Assim também o tempo tem noite e dia;
E não há tristeza se não houver a alegria
Ou metade ruim onde não há parte boa.
Dividido entre o que é falso e verdadeiro
Estruturado entre o positivo e o negativo,
O mundo oscila entre o ativo e o passivo,
Equilibrando entre o último e o primeiro;
Assim como existe o sagrado e o profano, 
Fluxos contrários, o que vai e o que vem,  
Nossa alma segrega o divino e o humano;
Também sem o fraco não haveria o forte,
Da mesma forma, nem o mal nem o bem.
E a eternidade da vida depende da morte.
                                                                                                                                
“ A imagem divina é dupla. Tem a cabeça luminosa e a cabeça sombria; o ideal branco e o ideal negro, a cabeça superior e a cabeça inferior. Uma é o sonho do Homem-Deus; a outra é suposição do Deus-Homem. Uma, a forma do Deus de Sabedoria; a outra é o ídolo do vulgo. “Toda luz, com efeito, supõe uma sombra, e não chega a ser claridade senão pela oposição dessa sombra.
“ A cabeça luminosa verte constantemente sobre a cabeça negra um rocio de esplendor. Abre-me, meu bem amado, disse Deus á Inteligência, posto que a minha cabeça está inundada de rocio e pelos cachos do meu cabelo resvalam as lágrimas da noite. Esse rocio é o maná de que se alimentam as almas dos justos. Os eleitos têm fome e a satisfazem com sobejo nas campinas do céu.
“Essas gotas são pérolas redondas, brilhantes como o diamante e límpidas como o cristal. São brancas e brilham com todas as cores, pois existe uma simples e única verdade: o esplendor de todas as coisas.”[1]

“ Se todos sob o céu reconhecerem o belo como belo,
Assim conhecerão o feio.
Se todos sob o Céu reconhecerem o bem como bem,
Assim conhecerão o mal.

Ser e não—ser engendram-se mutuamente.
Fácil e difícil completam-se.
Longo e curto delimitam-se.
Alto e baixo regulam-se.
Tom e som harmonizam-se.
Antes de depois sucedem-se.
[2]


                                       ∆


Esses versos do Tao Te King mostra que todo o antigo pensamento chinês se apoiava sobre a doutrina do equilíbrio perfeito. Yin e Yang. Céu e Terra, luz e trevas, escuro e claro, certo e errado. Para eles o universo era como uma moeda de duas faces. Por isso o Tao, o princípio de toda existência, era comparado a um rio. O rio só se forma se tiver duas margens. As águas só podem correr se houver duas margens para conter a sua torrente. Do contrário elas se espalham. Assim também acontecia com o universo.  Ele  precisa de duas forças contrárias para se compor e se equilibrar.
 
Esse mesmo princípio é encontrado na doutrina da Cabala. “A imagem divina é dupla. Tem a cabeça luminosa e a cabeça sombria; o ideal branco e o ideal negro; a cabeça superior e a cabeça inferior” (...). Aqui, luz e sombra, bem e mal, positivo e negativo, um deus bom e um deus mau, se contrastam e se opõem para gerar o universo e mantê-lo em eterno equilíbrio, pela ação de suas forças em oposição. Na física moderna essas duas forças são a dispersão e a aglutinação. Através da primeira o universo se expande. Aumenta de tamanho, ganha massa e volume. Pela segunda ele se contrai. Ganha força e interioridade. Essas duas forças equilibram o universo. Uma é regida pela relatividade, que faz a energia do universo se mover à velocidade da luz, formatando as realidades físicas; a outra é regida pela lei da gravidade, segundo a qual os corpos maiores tendem a reter em suas órbitas os corpos menores, formando os sistemas. Pela força da relatividade, o universo se expande e se dispersa; pela força da gravidade ele se encolhe e se organiza.
Como classificar essa maravilhosa intuição dos mestres taoístas e da Cabala? Como entender essa fantástica sensibilidade de homens que viveram há mais de dois mil anos atrás e nada tinham de recursos além da acuidade da sua visão e da profundidade de seus espíritos observadores?  
Aqui falamos de inequívocas deduções que correspondem às mais avançadas descobertas da física contemporânea. São intuições que valem não só para a moderna ciência, mas também para a filosofia. O que são o bem e o mal? Não é preciso que um se manifeste para que o outro possa ser notado? Quando saberemos se algo é bom se não tivermos uma ideia clara do que é ruim? 
É preciso a existência da dualidade para que exista o perfeito equilíbrio. Não há bem sem mal, positivo sem negativo, beleza sem feiura. Fora e dentro se completam e se harmonizam. Pode a saúde do corpo prosperar quando o espirito está doente? Pode a mente conservar-se sã, se o corpo não estiver saudável? No infinito todas as paralelas se encontram. Todo o universo se concentra em um único ponto. E se projeta, no infinito, como se fosse um cone de luz. Toda matéria tem uma “carteira de identidade, uma centelha inicial que lhe dá origem. O bóson de Higgs. Será que tudo isso não Deus escrevendo sua própria poesia?
Divina inspiração dos sábios. Maravilhosa poesia da Cabala.
 
 
 
 
[1] Comentários do Rabi Shimeon Ben Iochai- Sepher Dzneniûta- O Livro do Mistério Oculto. Citado por Eliphas Lévi- As Origens da Cabala-Ed. Pensamento , São Paulo, sd.
[2] Tao Te King- Verso II